LíderCast 273 - João Henrique Martins

Data de publicação: 07/05/2023, 12:22

Luciano Pires: Bom dia, boa tarde, boa noite, bem-vindo, bem-vinda a mais um LíderCast, o podcast que trata de liderança e empreendedorismo com gente que faz acontecer. No programa de hoje temos João Henrique Martins, que é cientista político, especializado em economia ilícita e políticas de controle do crime, com mais de 20 anos de experiência e pesquisas na área, João é doutorando em relações internacionais e mestre em ciência política, ambos pela USP, além de ser graduado em ciências policiais pela Academia de Polícia Militar do Barro Branco, onde também atuou como professor. Oficial da reserva da PM de São Paulo, atuou como analista do centro de inteligência, foi qualificado em redes de financiamento do crime organizado e terrorismo pelo FBI, lá nos Estados Unidos, e em gestão de sistemas de justiça criminal e segurança pública no Brasil e na Europa, em um programa de cooperação policial e judicial entre Brasil e União Europeia. Uma aula sobre o funcionamento ou seria desfuncionamento do setor da segurança pública brasileira.

Muito bem, mais um LíderCast, como sempre eu começo contando como é que o meu convidado veio para aqui, estava eu fazendo minhas navegações pela internet, dei de cara acho que foi com uma pesquisa, alguma coisa relacionada com segurança pública, não vou me lembrar dos detalhes, e fui recorrer ao meu papa da segurança pública, quando pinta um assunto assim, eu vou conversar com o Mota. E aí deu uma cutucada no Mota, Mota, estou com uma dúvida assim e assim, o Mota falou, cara, tem alguém que fez um trabalho muito legal em cima disso aí, bate um papo com ele, que ele vai saber do assunto. Eu peguei, entrei em contato, o bicho está com a agenda bem enrolada, a gente foi... vai vai vai, acertamos, estamos aqui. O programa começa com três perguntas que são as únicas que você não pode errar, o resto você pode chutar à vontade, mas as três têm que ser na pinta, seu nome, sua idade e o que que você faz.

João Henrique Martins: Sou João Henrique Martins, eu tenho 47 anos. Bem, eu sou um cientista político especializado em políticas de controle do crime e especificamente em economia ilícita, neste momento, eu sou também coordenador do Centro Integrado de Comando e Controle da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, e coordenador do Centro Integrado de Inteligência, que são os órgãos executivos do secretário de segurança pública de São Paulo.

Luciano Pires: Cara, vai ter assunto aqui hoje. Você nasceu aonde?

João Henrique Martins: Eu nasci em Osasco, mas eu fui criado em Carapicuíba, então região metropolitana aqui de São Paulo, a periferia de verdade. Meus pais são migrantes do Nordeste e são migrantes do nordeste profundo, às vezes eu converso com alguém, eu sou do Nordeste. Mas você é da capital? Então você não conhece o que é o Nordeste, porque é o Nordeste, qualquer capital, as capitais do Nordeste são lindas. Minha mãe é de Itororó, que é...

Luciano Pires: Tororó?

João Henrique Martins: Itororó... aliás, Tororó, você me pegou agora, mas enfim, é sul da Bahia, mas ele é Brasil profundo, como eu digo ali, já é a parte do sertão, e meu pai da cidade de Tangará, mas olhando a genealogia dos meus pais, os meus antepassados, eles foram todos peregrinos na região do sertão, por exemplo, meu avô materno, ele nasceu em uma cidade 1500 quilômetros ao norte, e assim, a família não consegue dizer como é que ele chegou no Sul, isso lá no século XIX. Então eu cresci em Carapicuíba, filho de migrantes nordestinos e nós somos a primeira geração não rural da minha família com...

Luciano Pires: Que legal, cara. Você tem irmãos?

João Henrique Martins: Tenho três irmãs, duas mais velhas que eu e uma mais nova.

Luciano Pires: E o que que seu pai e sua mãe faziam ou fazem?

João Henrique Martins: O meu pai, ele é semianalfabeto, então a vida inteira ele trabalhou com... mas tem uma inteligência intuitiva muito boa com aquelas... então ele foi mecânico, foi motorista de caminhões grandes, e minha mãe costureira a vida inteira, cresci vendo minha mãe até tarde costurando com aquelas luzes, com a lâmpada que tinha que ligar no 220 porque era muito forte ali, meus pais se separaram muito novo, quando eu era muito novo, quando eu tinha 9 anos de idade, então eu fui praticamente criado só pela minha mãe, que é um exemplo de retidão e trabalho duro.

Luciano Pires: Como é o nome dela?

João Henrique Martins: Anita.

Luciano Pires: Dona Anita, grande dona Anita.

João Henrique Martins: Orgulho da minha vida ela.

Luciano Pires: Como é que era o teu apelido quando você era pequenininho?

João Henrique Martins: Então, eu tenho o mesmo nome do meu pai, meu pai é João, eu sou o João Henrique, então meu apelido era Rique porque minha irmã mais nova não conseguia falar João Henrique, todo mundo me chamava de João Henrique para diferenciar, então a mais nova... ficou o apelido que era Rique.

Luciano Pires: O que que o Rique queria ser quando crescesse?

João Henrique Martins: É engraçado isso, Luciano, porque assim, quando você remonta as lembranças mais iniciais, eu tenho duas lembranças clássicas, que uma era como toda criança, bombeiro, policial militar, algo nesse caminho, e a outra coisa é, eu comecei a trabalhar aos 12 anos de idade, ainda meses antes da constituição, e eu trabalhava em uma padaria, eu era... não conseguia ter a altura para chegar no balcão, então eu colocava uma caixa ali de cerveja virada, subia para atender. E aí o meu primeiro salário eu comprei brinquedo, que eu não conseguia ter acesso aqueles brinquedos que eu queria, e minha mãe não quis pegar meu dinheiro, ela falou, não, é teu. Eu comprei brinquedo, comprei um monte de besteira, porque imagina, em uma família em quatro filhos, minha mãe comprava um pacote de bolacha e cortava em quatro, então eu fui lá e me esbaldei em alguma coisa assim. O segundo salário, eu comecei ao meu consumo de livros que eu nunca mais parei, e aí existiu... existiu não, existe ainda uma série de livros da Editora Abril chamada Grandes Líderes, e aí eu comecei a colecionar e eu ficava ansioso porque eram fascículos que vinham na banca de jornal, e aí eu ficava ansioso esperando um por semana, quando eu comprei o primeiro, não me lembro exatamente quem era o primeiro, talvez seja Hitler, Stalin, algum grande totalitário ou estadista assim, eu sei que eu mergulhei no mundo das biografias, que eu achei fantástica, e aí lá no segundo ou terceiro livro, e eu tenho esses livros até hoje, eu olhei atrás e vi quem é que escrevia aquilo, que eu achei fantástico a profundidade, o detalhe, explicar o indivíduo, o que na infância conectava ele na vida adulta, que marcava a personalidade, o relato em si, e aí eu vi que a maioria dos biógrafos eram cientistas políticos, e eu disse, eu quero ser cientista político. Então, eu tenho essas duas referências, sem planejar isso, sem colocar no papel, eu acabei desdobrando nas duas ações, porque eu me tornei oficial da polícia militar, antes eu fui soldado concursado da força aérea, depois me tornei policial militar, fiz uma carreira por 15 anos, 6 meses e 29 dias.

Luciano Pires: PM?

João Henrique Martins: Polícia Militar.

Luciano Pires: PM de arma na rua rondando...

João Henrique Martins: Sim, nesses 15 anos eu atuei uns dois anos na atividade operacional, na região periférica de São Paulo, nos municípios da grande São Paulo, mas principalmente nos bairros periféricos ali, de Imbu, Taboão da Serra, Itapecerica, Imbuaçu, Juquitiba, São Lourenço, eu atuei nesses seis municípios, depois trabalhei na zona norte um período. Mas a maior parte da carreira eu atuei como oficial de inteligência, fui analista do centro de inteligência.

Luciano Pires: Mas que legal, mas você veio da rua, você veio da experiência de campo na rua, você não é um teórico que sentou ali...

João Henrique Martins: Eu conheço a periferia de São Paulo e conheço o mundo por onde prolifera boa parte da atividade criminal porque eu nasci nele, eu por exemplo, eu costumo dizer que o primeiro corpo que eu vi não foi na polícia, eu vi morando em algumas regiões e aí saí um dia para comprar pão, tinha um corpo com um jornal no lugar, eu quase tropecei nele, que eu não tinha percebido, e aí a dinâmica da atividade criminal, a gente aprende a conviver, para você ter uma ideia eu tinha um colega ali no colégio, tinha dois melhores amigos, sétima série, entre a sexta e a oitava, tinha dois melhores amigos, isso ainda em Carapicuíba, no final da adolescência eu fui para Osasco, que era o sonho de status, sair de Carapicuíba e ir...

Luciano Pires: Subir um degrau para Osasco.

João Henrique Martins: Subir um degrau, ir para Osasco, que tudo era muito difícil, Carapicuíba era tudo muito longe, a COHAB.

Luciano Pires: Que ano era isso? Você lembra? Anos 80, 90?

João Henrique Martins: A gente foi para lá nos anos 90, nós estamos falando ali de 90... esse período quando a gente saiu, eu estava com 15, 16 anos, então é isso, 91, 90, mais ou menos nesse período.

Luciano Pires: Collor assumindo.

João Henrique Martins: E aí olha só que interessante, Luciano, esse período era um período muito de desesperança, a gente tinha expectativa nenhuma, eu lembro que era muito difícil arrumar emprego, e eu vivia de emprego em emprego assim, a cada três meses, trabalhei em tudo o que você imagina, trabalhei na padaria, trabalhei como operador de fábrica assim, de pião de chão de fábrica mesmo, trabalhei fazendo limpeza em obra, de três em três meses você estava em alguma coisa, como office boy.

Luciano Pires: A gente estava saindo de Sarney, com inflação de 84% ao mês, fazendo a transição para o Collor, o Collor congelando tudo, abrindo o Brasil, cara, era um movimento fantástico.

João Henrique Martins: Isso terminou de quebrar o meu pai essa coisa, ele tinha acabado de vender acho que um caminhão ou uma casa, alguma coisa, meus pais já eram separados.

Luciano Pires: O dinheirinho no banco, o Collor foi lá...

João Henrique Martins: É, uma coisa pequena que ele tinha, pôs lá, ficou louco. Lembro daquele quebra quebra no centro de São Paulo, porque a gente... uma das coisas que eu mais gostei de fazer foi trabalhar como office boy, por quê? Eu descobri o centro de São Paulo, que era uma coisa... é tão incrível isso, a gente contar para os mais jovens, que eu me lembro ainda na tenra idade a primeira vez que eu fui na lanchonete do McDonald's, que foi um evento, a gente saiu de Carapicuíba, pegamos um ônibus, um trem, metrô, chegamos ali na conselheiro... ali na praça em frente ao teatro, como é o nome ali?

Luciano Pires: Que teatro?

João Henrique Martins: O Teatro Municipal de São Paulo, tem a patriarca de um lado, tem o Viaduto do Chá, Teatro Municipal e tem do lado ali Conselheiro alguma coisa...

Luciano Pires: Não me lembro qual é.

João Henrique Martins: Mas enfim, acho que foi o primeiro McDonald's de São Paulo...

Luciano Pires: Brotero? Eu não me lembro qual que é.

João Henrique Martins: Mas enfim, e aí a minha mãe tadinha, se organizou, arrumou dinheiro, levou eu e minha irmã mais nova, minha irmã mais nova ficou tão emocionada que ela não conseguia comer o lanche, falei, me dá aqui que eu como. E aí olha só, porque era um evento e no centro de São Paulo, veja, a gente demorava em torno de três, três horas e pouco para chegar lá no centro, que era tudo muito difícil. Então, quando eu comecei a trabalhar, e nessa época, eu dei uma volta, mas eu vou voltar para a questão do amigo, mas era tudo muito difícil, a gente ia para o centro, eu lembro que foi uma das primeiras coisas que me chocou, viver em Carapicuíba naqueles anos, naquele período de desemprego alto, inflação, era tudo muito difícil, a gente saía de casa com o dinheiro contadinho para pegar um ônibus, tentar um emprego, você não podia comer um pastel, e aí eu chegava no centro de São Paulo e via aquela prosperidade da Paulista, aquilo foi um choque para mim nesse período, por um lado isso causava um pouco de revolta, revolta que alguns grupos radicais conseguem canalizar, já fazendo uma ponte com a questão política, ideológica, que a gente não acordou para isso, mas por outro lado eu descobri duas coisas, eu descobri a biblioteca Mário de Andrade...

Luciano Pires: Ah cara, eu tenho boas horas ali.

João Henrique Martins: Meu Deus, temos então. Não vou nem me alongar porque eu quero voltar nisso, e outra coisa que eu descobri foi os sebos, por exemplo, essa aptidão para ler biografia, nos sebos, ela explodiu. Bem, então eu era um jovem que fazia isso, eu saía da periferia, trabalhava no centro, gastava um tempo danado, fazia o trabalho rapidinho para ficar ou na Mário de Andrade ou no sebo fuçando coisas e lendo, não existia internet à época, a internet foi se tornar um pouco popular seis, sete anos depois, porque nós estamos falando em 90, 91. No colégio eu lembro que era um período muito difícil e a gente tinha muita proximidade com as dificuldades, com a dificuldade e com o crime, olha que coisa isso, eu tinha dois melhores amigos, um deles que era o Paulo, ele era filho de... o pai dele tinha um despachante, então ele era quase um burguês classe alta para nós, mas obviamente não era.

Luciano Pires: Um burguês classe alta em Carapicuíba, é isso?

João Henrique Martins: Em Carapicuíba, a COHAB de Carapicuíba, imagina. Mas ele era um amigo querido, estava sempre próspero, tanto é que foi o primeiro a ter carro, que pai dele era um fusquinha, aquela coisa da época, você pega o fusquinha, incrementa, ele gastava todo o salário, ele trabalhava com o pai dele e a gente era muito amigo. E tinha um segundo amigo, que eu não vou dizer o nome aqui, mas que assim, eu e ele disputávamos, a gente nitidamente tinha uma capacidade intelectual, a gente era engenhoso, um pouco acima da média, então assim, isso aparecia na escola, no desempenho escolar, mas isso aparecia também nas escadas que a gente tinha e tudo mais. Bem, esse amigo um dia, na roda de amigos, falou assim, eu estou com um negócio aqui, vamos comprar umas roupas, na época era a época do New Way, vamos comprar aquelas bermudas coloridas, vamos comprar esse negócio lá no centro. Vamos comprar? Com que dinheiro, tá maluco? E ele apareceu com um talão de cheque, com o nome obviamente de outra pessoa e um RG e o nome dele, na foto de quem era o RG, não gente, eu compro aqui nesse... a gente falou, cara, mas isso não é seu. Isso aqui eu arrumei. Mas arrumou aonde?  Aí todo mundo olhou aquilo estranho, cara, deu as costas e passou batido. Obviamente aquilo era produto de roubo, de algum golpe que ele fez ou participou, que acessou. Também era um amigo muito próximo, aí o tempo passa, os meses passam, eu me mudei logo em seguida, um ano depois mudei, e a gente, olha só, não destacou isso, porque essa coisa do cara que virava o pequeno traficante, o cara que virava usuário, o cara que começava a roubar era bem próximo, mas obviamente as pessoas que não passam pela periferia não conhecem o que que é a ética, na periferia, quer dizer, a maioria das pessoas. Esse ato desse colega provocou o nosso afastamento, porque todo mundo entendeu o que aconteceu naquele momento, então ele se afastou e foi...

Luciano Pires: O grupo se afastou?

João Henrique Martins: Naturalmente, naturalmente, porque ele veio e apresentou aquilo, quer dizer, não participa mais do nosso desenho, mas você não faz discurso sobre isso, sabe, Luciano?

Luciano Pires: Eu entendo, quando você fala que é natural você está falando de valores morais, houve um choque moral ali, eles talvez tivessem uma moral muito mais flexível que a de vocês, ah tudo bem, e vocês, opa, espera aí, ele está fazendo coisa errada, eu não vou me meter.

João Henrique Martins: E naturalmente, quando você cresce em um ambiente... eu vou usar uma expresso aqui, talvez não seja adequada, mas ela explica bem isso, quando você nasce em um ambiente o tempo todo no limite, o tempo todo crônico, naturalmente as pessoas vão escolhendo as suas posições e se enrijecendo nelas, naturalmente, você não tem... por isso que você não vai encontrar a figura do maconheiro na periferia assim, ou o cara é um usuário de droga crônico que vira dependente e tal, e aí entra nesse mundo, ele pode até sair, ele pode até ter uma variação, se conectar à cultura que tem, ou ele está completamente fora disso, não tem meio termo.

Luciano Pires: Não tem consumo recreativo de drogas.

João Henrique Martins: Até porque é o que eu sempre discuto quando a gente vai falar sobre drogas, é dizer o seguinte, é muito fácil para quem hoje é classe média alta defender a liberação de drogas, porque se o seu filho se torna um dependente crônico, você põe ele numa clínica, paga aí 10 mil reais por mês e consegue desintoxica-lo, como é que a Anita, a dona Maria da periferia, que ganha 1500 reais, 1000 reais para sustentar quatro filhos vai conseguir... ela tem dois anos, o primeiro é porque os filhos são unidades de produção de renda, no mínimo para deixar de ser um ônus para a mãe, que foi o que eu fui, eu deixei de ser um ônus para a minha mãe a partir dos 12 anos, pelo menos em parte o ônus, e depois você não só vira um ônus, como você vira o problema, o que que você faz com aquele filho? Porque todo mundo que está defendendo a liberação de drogas não tem nenhuma solução para o usuário crônico, que se torna um adicto compulsivo, deixa de produzir, alguém vai ter que sustentá-lo, alguém vai ter que tratá-lo, e aí você destrói famílias. E isso é muito nítido na periferia, não precisa ter discurso, não precisa explicar, não precisa ler, as pessoas sabem isso intuitivamente. Então, a gente se afastou por natureza, porque 99% de quem está na periferia está próximo do crime, o rejeita, o percebe.

Luciano Pires: Você está batendo numa tecla interessante que tem uma escolha?

João Henrique Martins: É intuitiva, exatamente. E aí, Luciano, eu encontrei esse meu ex-amigo precisamente 20 e poucos anos depois como analista de inteligência, eu tratando dados, porque a gente recebeu um pedido de apoio da inteligência de Minas Gerais, que estavam investigando um caso de um sequestro, e eles tinham algumas evidências de que parte dos criminosos eram de São Paulo, e a Polícia Militar de São Paulo tem um cadastro gigantesco de criminosos, que está junto... na verdade, a Secretaria de Segurança e Secretaria de Assuntos Penitenciários, eu era analista do sistema prisional na época, e aí eu fui oficial, então eu tinha um time e pus o time para analisar isso, e eu comecei a tratar análise de redes, foi uma coisa que eu desenvolvi bastante, porque eu desenvolvi uma carreira acadêmica junto, então por método a gente processava muita coisa. Nesses processamentos... e aí chegou uns alvos mais ou menos, alvos é quando a gente define assim, os possíveis criminosos conhecidos que estão envolvidos com o pedido da outra agência, e aí começamos a analisar, de repente eu vi uma foto.

Luciano Pires: Reconheceu o cara.

João Henrique Martins: E aí eu reconheci, aí eu falei, na hora eu reconheci, é o fulano, e eu falei, não é possível, não é ele, e aí eu olhei o nome, e vi que o nome, o primeiro nome não era o que eu conhecia ele, eu falei, talvez não seja então, aí depois eu fui olhar os outros nomes, e aí ele tinha um nome grande, mas estava lá no meio, que era o nome pelo qual a gente chamava ele. Me gelou a alma assim, ele não só se tornou um criminoso, como ele se tornou um líder de quadrilha de sequestradores, e assim extremamente sagaz e violento assim. E aí poxa, 20 anos, eu já não tenho contato com ninguém de lá, eu saí Carapicuíba aos 16, 17 anos e nunca mais voltei a morar na região, perdi o contato com as pessoas, mas por meio de alguns conhecidos, primos, que a família toda está por ali, entrei em contato e aí fui levantar alguma informação, não disse o porquê, o pessoal, não, o fulano se tornou um bandidão, já tem um tempo que a gente não tem notícia dele, mas se tornou um bandidão perigoso.

Luciano Pires: Você traz uma dimensão, outro dia eu estava no YouTube, e eu vi uma discussão que estava rolando lá, na Confraria Café Brasil ali, o pessoal publicou um vídeo, onde tinha uma cena evidentemente em uma periferia, que eu não sei de onde era, uma periferia qualquer, e você vê que é bem periferia assim, as casas chegando em uma rua que tinha um pedaço que não tinha asfaltamento, não tinha calçamento ali, e tem uma câmera de segurança e ela pega uma situação em que um cara tira a mulher de dentro de casa e começa a bater na mulher, mas não é só bater, ele pega um pedaço de papel e começa a descer, batendo mesmo, no meio da rua, e as pessoas começam a chegar e ficam em volta assistindo o cara batendo na mulher, e você olha aquilo, você fica indignado, e o cara vai, mas ele dá uma surra na mulher, e ninguém se mexe, tinha umas 30 pessoas em volta, ninguém se mexe, e aí a discussão da turma, cara, que absurdo, como é que não param esse cara, se sou eu que estou lá, eu quebro esse cara no meio.  Quando terminou a discussão, aí eu lancei uma provocação lá, vem cá, e se esse cara for o líder da quadrilha do bairro, cara, o chefão, você iria lá para se meter, para parar esse cara? E aí quando essa coisa aparece, você fala, não é uma questão só de você assistir uma injustiça e não fazer nada, cara, esse cara está tacando o terror lá, ele faz o que ele quiser com quem ele quiser, e ai de você se levantar a voz para dizer, não bate nela, ele te apaga. E essa é a realidade nessas periferias.

João Henrique Martins: Exatamente, que se impõe, esse equilíbrio tênue que existe, você está me falando, agora eu estava lembrando de uma circunstância, quando a gente foi morar COHAB, a gente... a COHAB 5, que hoje você passa ali pelo Rodoanel, você tem o fundo dela, a COHAB 5 foi a última das COHABs, além de ser periferia, o fato de ser COHAB é que ela tem uma intensa concentração populacional, é demografia chinesa assim, e ao contrário das COHABs na cidade de São Paulo, que está dentro de uma grande metrópole, que tem mais atenção, as COHABs que estão nas periferias nos municípios da grande São Paulo pequenos,  elas não têm, elas são bem piores no sentido de aparelhamento público, porque ela está largada, ela está afastada, ninguém vê, então para você ter uma ideia, o fundo da COHAB, que assim, o que passa o Rodoanel hoje era um grande matagal, que era a divisa entre Carapicuíba e Osasco, o nome desse bairro imediatamente dado pelas pessoas já era Malvinas, porque a gente chegou em 83, tinha acabado de sair a guerra, sabe, a gente tinha horário e locais onde a gente sabia que não deveria estar e assim por diante. Então, eu lembro de uma circunstância onde uma criança foi atropelada e os homens todos desceram com picareta e quebraram a rua, várias valas, porque não tinha a infraestrutura para colocar uma calçada, ou um semáforo que seja, não tinha confiança nas estruturas de segurança para dar resposta para aquele crime horrível, e as pessoas saem fazendo o que podem, foi exatamente o exemplo que você destacou, então você conhecer o que é viver nas periferias, em especial nesse período, porque hoje as periferias são bem mais ricas e prósperas, tem uma economia estruturada do que era nesse período, porque a gente vivia a chamada carestia profunda. E depois... bem, eu vivi, cresci na periferia, e aí com 15, 16 anos fui estudar, e aí consegui com muito esforço, em primeiro passei em um concurso para soldado da Força Aérea, que mudou a minha vida, porque eu consegui, o primeiro emprego que eu tive estabilidade, fiquei três anos, essa estabilidade me permitiu fazer um cursinho na época para entrar na academia de polícia era FUVEST, na verdade, isso me permitiu enxergar o mundo, porque até então eu só buscava a sobrevivência, eu precisava ter um emprego que pagasse a minha vida, as minhas contas, e era muito pouco a minha vida, quer dizer, a necessidade de não ser dependente da minha mãe, da casa, aí eu consigo entrar na Força Aérea, eu lembro que o soldado, o salário de soldado era o dobro do que eu conseguia ganhar, o salário de soldado da Força Aérea era o dobro do que qualquer emprego que eu tinha, eu continuei estudando o tempo todo, até porque eu sempre tive um bom desempenho na escola, mas por exemplo...

Luciano Pires: Por que Força Aérea?

João Henrique Martins: Primeiro porque eu sempre quis...

Luciano Pires: Você queria voar?

João Henrique Martins: Não, eu sempre gostei da atividade militar, bombeiro e tudo mais, mas era tudo isso muito longe da nossa... a gente não tinha informação nem sobre os tipos de concurso, mas eu fui buscar, a prova para sargento, para oficial era tudo muito distante da minha realidade, por exemplo, eu nunca tinha estudado química e física, eu nunca... ou não tinha professor ou você começava a disciplina, saía, então essas coisas eram básicas para se estudar e eu não conseguia ter acesso a isso. E aí surgiu esse concurso para soldado especialista na Força Aérea, eu prestei e entrei exatamente no dia 14 de Julho de 1997, a queda da Bastilha em 97, isso foi o primeiro momento que eu parei de pensar em sobrevivência, e passei a pensar em sentido, conteúdo, carreira. E aí eu me formei, fui trabalhar com um coronel, coronel Araribóia das Força Aérea, eu era motorista dele, e aí eu falei, coronel, eu vou me preparar para ir para as forças especiais aqui, eu sempre quis militar, bombeiro, era isso que mais ou menos que estava. Antes disso eu tive uma vivência de militância política de pensamento, como todo mundo nessa época, à esquerda, que era aquela coisa revolta, de revolta com o sistema, com o status quo, aí depois me decepcionei e aí voltei para esse... estou ali especialmente em 97 isso. Estou lá, o coronel fala assim, não, João, na verdade o meu nome de guerra era Martins, ele falou, por que que você quer ir para a equipe? Porque você é soldado, você vai ser soldado temporário, isso não vai te dar carreira, ele falou, vai para os bombeiros, então, já que você quer tratar com salvamento, com unidades especiais. E aí eu comecei a me preparar fisicamente, fui ver, ele, tenta oficial, seja direto oficial. Aí eu fui estudar isso, o que era ser oficial dos bombeiros de São Paulo, e aí na verdade, os bombeiros é uma carreira dentro da Polícia Militar, comecei a estudar, aí descobri que era FUVEST, falei, meu Deus, como é que eu vou passar na FUVEST. E aí o coronel falou assim, se organiza. E aí ele meio que me desafiou e foi o que eu fiz, mergulhei em um curso em cinco meses, e estudava 12 horas por dia assim, eu diria para ele, tinha uma mala de livros que ficava em baixo do banco, ele estava lá... a gente chamava de garagem onde ficava os veículos, ora eu estava auxiliando um sargento mecânico, ora eu estava ali estudando, fomos para o concurso, o concurso com 7 mil candidatos, eu fui o quadragésimo quarto, e aí gabaritei história, quase gabaritei geografia, aprendi química e física, o que tinha naquele momento, chegou na análise psicológica fui reprovado, aí aquilo era para ter iniciado uma depressão, mas acho que o meu temperamento sanguíneo não permite, eu fui para cima...

Luciano Pires: O que que te reprovou? 

E isso é muito nítido na periferia, não precisa ter discurso, não precisa explicar, não precisa ler, as pessoas sabem isso intuitivamente. Então, a gente se afastou por natureza, porque 99% de quem está na periferia está próximo do crime, o rejeita, o percebe.

Luciano Pires: Você está batendo numa tecla interessante que tem uma escolha?

João Henrique Martins: É intuitiva, exatamente. E aí, Luciano, eu encontrei esse meu ex-amigo precisamente 20 e poucos anos depois como analista de inteligência, eu tratando dados, porque a gente recebeu um pedido de apoio da inteligência de Minas Gerais, que estavam investigando um caso de um sequestro, e eles tinham algumas evidências de que parte dos criminosos eram de São Paulo, e a Polícia Militar de São Paulo tem um cadastro gigantesco de criminosos, que está junto... na verdade, a Secretaria de Segurança e Secretaria de Assuntos Penitenciários, eu era analista do sistema prisional na época, e aí eu fui oficial, então eu tinha um time e pus o time para analisar isso, e eu comecei a tratar análise de redes, foi uma coisa que eu desenvolvi bastante, porque eu desenvolvi uma carreira acadêmica junto, então por método a gente processava muita coisa. Nesses processamentos... e aí chegou uns alvos mais ou menos, alvos é quando a gente define assim, os possíveis criminosos conhecidos que estão envolvidos com o pedido da outra agência, e aí começamos a analisar, de repente eu vi uma foto.

Luciano Pires: Reconheceu o cara.

João Henrique Martins: E aí eu reconheci, aí eu falei, na hora eu reconheci, é o fulano, e eu falei, não é possível, não é ele, e aí eu olhei o nome, e vi que o nome, o primeiro nome não era o que eu conhecia ele, eu falei, talvez não seja então, aí depois eu fui olhar os outros nomes, e aí ele tinha um nome grande, mas estava lá no meio, que era o nome pelo qual a gente chamava ele. Me gelou a alma assim, ele não só se tornou um criminoso, como ele se tornou um líder de quadrilha de sequestradores, e assim extremamente sagaz e violento assim. E aí poxa, 20 anos, eu já não tenho contato com ninguém de lá, eu saí Carapicuíba aos 16, 17 anos e nunca mais voltei a morar na região, perdi o contato com as pessoas, mas por meio de alguns conhecidos, primos, que a família toda está por ali, entrei em contato e aí fui levantar alguma informação, não disse o porquê, o pessoal, não, o fulano se tornou um bandidão, já tem um tempo que a gente não tem notícia dele, mas se tornou um bandidão perigoso.

Luciano Pires: Você traz uma dimensão, outro dia eu estava no YouTube, e eu vi uma discussão que estava rolando lá, na Confraria Café Brasil ali, o pessoal publicou um vídeo, onde tinha uma cena evidentemente em uma periferia, que eu não sei de onde era, uma periferia qualquer, e você vê que é bem periferia assim, as casas chegando em uma rua que tinha um pedaço que não tinha asfaltamento, não tinha calçamento ali, e tem uma câmera de segurança e ela pega uma situação em que um cara tira a mulher de dentro de casa e começa a bater na mulher, mas não é só bater, ele pega um pedaço de papel e começa a descer, batendo mesmo, no meio da rua, e as pessoas começam a chegar e ficam em volta assistindo o cara batendo na mulher, e você olha aquilo, você fica indignado, e o cara vai, mas ele dá uma surra na mulher, e ninguém se mexe, tinha umas 30 pessoas em volta, ninguém se mexe, e aí a discussão da turma, cara, que absurdo, como é que não param esse cara, se sou eu que estou lá, eu quebro esse cara no meio.  Quando terminou a discussão, aí eu lancei uma provocação lá, vem cá, e se esse cara for o líder da quadrilha do bairro, cara, o chefão, você iria lá para se meter, para parar esse cara? E aí quando essa coisa aparece, você fala, não é uma questão só de você assistir uma injustiça e não fazer nada, cara, esse cara está tacando o terror lá, ele faz o que ele quiser com quem ele quiser, e ai de você se levantar a voz para dizer, não bate nela, ele te apaga. E essa é a realidade nessas periferias.

João Henrique Martins: Exatamente, que se impõe, esse equilíbrio tênue que existe, você está me falando, agora eu estava lembrando de uma circunstância, quando a gente foi morar COHAB, a gente... a COHAB 5, que hoje você passa ali pelo Rodoanel, você tem o fundo dela, a COHAB 5 foi a última das COHABs, além de ser periferia, o fato de ser COHAB é que ela tem uma intensa concentração populacional, é demografia chinesa assim, e ao contrário das COHABs na cidade de São Paulo, que está dentro de uma grande metrópole, que tem mais atenção, as COHABs que estão nas periferias nos municípios da grande São Paulo pequenos,  elas não têm, elas são bem piores no sentido de aparelhamento público, porque ela está largada, ela está afastada, ninguém vê, então para você ter uma ideia, o fundo da COHAB, que assim, o que passa o Rodoanel hoje era um grande matagal, que era a divisa entre Carapicuíba e Osasco, o nome desse bairro imediatamente dado pelas pessoas já era Malvinas, porque a gente chegou em 83, tinha acabado de sair a guerra, sabe, a gente tinha horário e locais onde a gente sabia que não deveria estar e assim por diante. Então, eu lembro de uma circunstância onde uma criança foi atropelada e os homens todos desceram com picareta e quebraram a rua, várias valas, porque não tinha a infraestrutura para colocar uma calçada, ou um semáforo que seja, não tinha confiança nas estruturas de segurança para dar resposta para aquele crime horrível, e as pessoas saem fazendo o que podem, foi exatamente o exemplo que você destacou, então você conhecer o que é viver nas periferias, em especial nesse período, porque hoje as periferias são bem mais ricas e prósperas, tem uma economia estruturada do que era nesse período, porque a gente vivia a chamada carestia profunda. E depois... bem, eu vivi, cresci na periferia, e aí com 15, 16 anos fui estudar, e aí consegui com muito esforço, em primeiro passei em um concurso para soldado da Força Aérea, que mudou a minha vida, porque eu consegui, o primeiro emprego que eu tive estabilidade, fiquei três anos, essa estabilidade me permitiu fazer um cursinho na época para entrar na academia de polícia era FUVEST, na verdade, isso me permitiu enxergar o mundo, porque até então eu só buscava a sobrevivência, eu precisava ter um emprego que pagasse a minha vida, as minhas contas, e era muito pouco a minha vida, quer dizer, a necessidade de não ser dependente da minha mãe, da casa, aí eu consigo entrar na Força Aérea, eu lembro que o soldado, o salário de soldado era o dobro do que eu conseguia ganhar, o salário de soldado da Força Aérea era o dobro do que qualquer emprego que eu tinha, eu continuei estudando o tempo todo, até porque eu sempre tive um bom desempenho na escola, mas por exemplo...

Luciano Pires: Por que Força Aérea?

João Henrique Martins: Primeiro porque eu sempre quis...

Luciano Pires: Você queria voar?

João Henrique Martins: Não, eu sempre gostei da atividade militar, bombeiro e tudo mais, mas era tudo isso muito longe da nossa... a gente não tinha informação nem sobre os tipos de concurso, mas eu fui buscar, a prova para sargento, para oficial era tudo muito distante da minha realidade, por exemplo, eu nunca tinha estudado química e física, eu nunca... ou não tinha professor ou você começava a disciplina, saía, então essas coisas eram básicas para se estudar e eu não conseguia ter acesso a isso. E aí surgiu esse concurso para soldado especialista na Força Aérea, eu prestei e entrei exatamente no dia 14 de Julho de 1997, a queda da Bastilha em 97, isso foi o primeiro momento que eu parei de pensar em sobrevivência, e passei a pensar em sentido, conteúdo, carreira. E aí eu me formei, fui trabalhar com um coronel, coronel Araribóia das Força Aérea, eu era motorista dele, e aí eu falei, coronel, eu vou me preparar para ir para as forças especiais aqui, eu sempre quis militar, bombeiro, era isso que mais ou menos que estava. Antes disso eu tive uma vivência de militância política de pensamento, como todo mundo nessa época, à esquerda, que era aquela coisa revolta, de revolta com o sistema, com o status quo, aí depois me decepcionei e aí voltei para esse... estou ali especialmente em 97 isso. Estou lá, o coronel fala assim, não, João, na verdade o meu nome de guerra era Martins, ele falou, por que que você quer ir para a equipe? Porque você é soldado, você vai ser soldado temporário, isso não vai te dar carreira, ele falou, vai para os bombeiros, então, já que você quer tratar com salvamento, com unidades especiais. E aí eu comecei a me preparar fisicamente, fui ver, ele, tenta oficial, seja direto oficial. Aí eu fui estudar isso, o que era ser oficial dos bombeiros de São Paulo, e aí na verdade, os bombeiros é uma carreira dentro da Polícia Militar, comecei a estudar, aí descobri que era FUVEST, falei, meu Deus, como é que eu vou passar na FUVEST. E aí o coronel falou assim, se organiza. E aí ele meio que me desafiou e foi o que eu fiz, mergulhei em um curso em cinco meses, e estudava 12 horas por dia assim, eu diria para ele, tinha uma mala de livros que ficava em baixo do banco, ele estava lá... a gente chamava de garagem onde ficava os veículos, ora eu estava auxiliando um sargento mecânico, ora eu estava ali estudando, fomos para o concurso, o concurso com 7 mil candidatos, eu fui o quadragésimo quarto, e aí gabaritei história, quase gabaritei geografia, aprendi química e física, o que tinha naquele momento, chegou na análise psicológica fui reprovado, aí aquilo era para ter iniciado uma depressão, mas acho que o meu temperamento sanguíneo não permite, eu fui para cima...

Luciano Pires: O que que te reprovou? 

João Henrique Martins: Então, aí eu volto, tem uma devolutiva, a devolutiva diz o seguinte, o processo de análise é tudo muito preciso, então eles traçam uma máscara, a máscara você tem que estar enquadrado, e se você está um pouquinho para cima, um pouquinho para baixo, você é eliminado porque o concurso tem muitas fases, o psicológico me explicando, que depois virou, inclusive, meu professor na própria academia, ele falou, você não tem nenhum problema, pelo contrário, você tem algumas habilidades aqui acima da média, mas provavelmente é pressão, é estresse e aí para outras questões emocionais, de convívio, aliás, de convívio ele não estava muito errado, porque isso sempre foi uma dificuldade assim.

Luciano Pires: Mas vem cá, você já começou a dar umas pistas interessantes para a gente aqui, que o policial que está na rua dentro de um carro, não é um brucutu que resolveu, vou para a polícia, vou ser polícia, e foi lá, foi ser polícia, você está me dizendo que o cara teve que estudar, tem uma puta peneira, o cara tem que passar, o cara não chega lá como um perdido qualquer.

João Henrique Martins: Sem dúvida, o meu concurso foram em torno de 200 candidatos, com 7 mil candidatos, a nossa nota na FUVEST à época eu acho que era a quinta ou a sexta mais alta, a média, a nota de corte, então é... e depois que você passava a primeira e segunda fase da FUVEST, você tinha a terceira e quarta fase, que eram os exercícios físicos, tinha inclusive salto em altura, sabe, uns exercícios que a gente nunca tinha ouvido falar, imagina, eu nunca tinha tido educação física, educação física que eu tinha na escola era futebol. Aí chegava e falava assim, salto em altura, salto em distância. Mas enfim, me preparei, passei no ano seguinte, passei ainda melhor, fui décimo terceiro da turma, aí de fato fiz o que o psicólogo disse, cara, relaxa. Porque era isso Luciano, veja, eu já mudei, eu saí da sobrevivência quando eu fui ter... passei a ser um funcionário público federal, um soldado concursado, você tinha um período de seis anos de estabilidade, ao passar para a academia, o salário acho que triplicava, ou quadruplicava, fora isso, a condição de oficial da PM, você frequenta a academia de polícia durante 4 anos, que já é um curso superior, já é um concurso, você já recebe um salário, porque você já é um funcionário público, ao mesmo tempo você é um graduando, é um cadete.

Luciano Pires: É o Barro Branco?

João Henrique Martins: É o Barro Branco, termina os 4 anos, ao final dos 4 anos você tem uma carreira de 30 anos, com aposentadoria, cara, assim, é levar... dar um salto que ninguém dos meus antepassados deram em tão pouco tempo.

Luciano Pires: Eu fui palestrar lá.

João Henrique Martins: Você foi palestrar na Barro Branco.

Luciano Pires: Acho que duas vezes eu fui lá, e em uma das vezes que eu fui lá, eu fiquei com um dos comandantes lá, a gente foi almoçar junto no próprio Barro Branco, e na hora que eu estava na sala me preparando, eu ia dar palestra lá, estava conversando com ele, ele chamou dois ou três oficiais, que eram os que estavam cursando ali, fulano, ciclano, vem cá, conta aqui, conta para ele qual é a tua pós, teu TCC, teu não sei o que... e os garotões chegaram lá e falaram, não, estou fazendo um trabalho de inteligência... cara, o cara falava, eu falava, meu, isso é ciência, os caras são tudo em um nível, que eu falei, e é essa a molecada que vai sair e eles serão os oficiais que irão comandar, então não é um bando brucutu que sai dando porrada nos outros na rua.

João Henrique Martins: Exatamente, aliás, é exatamente a arte da produção da ciência policial, a arte do combate, eu sempre digo o seguinte, a polícia ela pode orientar, ela pode instruir, mas a função que... ela pode, tantos outros podem fazer isso, mas a função primordial da polícia é a imposição da lei por meio da violência legal, a violência legal exige um nível de conhecimento e técnica científica, porque o limite entre a violência legal e ilegal é tênue, é exatamente o limite de um cirurgião cardíaco na hora que ele vai abrir, quando ele vai afetar ali o teu tecido, vai abrir a sua carótida...

Luciano Pires: Tem que estar claro os danos que ele pode causar, ele tem que saber onde é que ele pode mexer, as consequências do que ele vai... saquei a arma, tirei a arma do coldre, o que pode acontecer a partir do momento que eu estou com ela na mão?

João Henrique Martins: É isso, você tem implicações, são questões que estão no domínio jurídico, óbvio, qual é o limite da ação legal e ilegal, você tem implicações psicológicas, porque o impacto que você causa no público quando você saca uma arma, imposição da voz, o impacto que você causa em você, porque essa coisa de entrar em confronto armado é muito legal no filme, mas depois, meu amigo, você carrega isso para o resto da vida, ninguém esquece um confronto armado, e isso pode afetar, pode no, isso afeta a tua vida, você precisa ter um suporte, você precisa estar encaixado em uma lógica que faça sentido para você como ser humano, não só como profissional. Porque é antinatural o tempo todo, é antinatural isso, tem implicações do ponto de vista econômico, sociais, quer dizer, a ação ou não atuação da polícia muda completamente a vida das pessoas naquela região, então é uma.... Necessariamente a ciência policial é uma ciência multidisciplinar, porque ela afeta várias dimensões, é isso que a gente aprende, para você ter uma ideia é um curso de quase 6 mil horas, são quatro anos em regime de internato.

Luciano Pires: Aquelas 7 mil que você falou que entraram lá, qual era a peneira? Para sair quantos?

João Henrique Martins: Não, 7 mil candidatos e entraram 200.

Luciano Pires: Isso, de 7 mil para 200 vagas.

João Henrique Martins: Isso aí. Então, exatamente essa peneira é a pressão, porque lá dentro da academia você tem as matérias, você tem por exemplo, 40% do curso de administração, você tem 90% de um curso de direito, e você tem as disciplinas técnicas policiais, que é gestão de policiamento, confronto, quer dizer, as situações de confronto, o uso da arma, uso de armas não letais, técnicas policiais, ações de salvamento, de resgate, e assim vai embora, é um curso, ele é super... é multidisciplinar e...

Luciano Pires: E você lá dentro, você se forma? Mas você se forma o que? Você sai com o que lá? Você não sai bacharel de alguma coisa, você sai o que?

João Henrique Martins: Hoje a gente já tem isso formatado, que você... antigamente era o curso de formação de oficiais que tinha o status de curso superior, hoje já evoluiu...

Luciano Pires: Você sai com uma patente? Sai como?

João Henrique Martins: Sim, sim, como aspirante a oficial, aí você passa o estágio probatório que em regra é por um ano, às vezes eles reduzem, a minha época foi um ano, eu me formei em 2003, então fiz 20 anos agora, você sai aspirante, depois de um ano você se torna segundo tenente, e aí inicia a carreira, segundo tenente, primeiro tenente, capitão, major, tenente coronel, coronel. Só que a atividade policial no Brasil, dentro da Polícia Militar, quem comanda policiamento in loco é o tenente e o capitão, o major, o tenente coronel, e o coronel, eles são oficiais superiores que lidam com a direção, fazendo uma analogia...

Luciano Pires: É um general na...

João Henrique Martins: E a diferença, aí só a nomenclatura é parecida, porque a estrutura e a organização é completamente diferente, as Forças Armadas não existe atuação individual, quer dizer, o soldado, ele só é algo dentro de no mínimo de um grupo de combate, que é um grupo pequeno, mas ele é alguém dentro do pelotão, o tenente tem uma autonomia muito limitada, porque o tenente está dentro de uma companhia, tem três, quatro tenentes que comandam pelotões, então a decisão que é feita aqui pelo general, pelos coronéis, ela tem que ser especificamente cumprida, ou seja, o que eu quero dizer, tem pouca autonomia dos oficiais, aliás o que se espera dos oficiais é que eles cumpram de maneira muito precisa as ordens que recebem, porque também não vai ter muita variação no campo, essa é a lógica, um bom exército preserva essa linha de comando, essa disciplina na execução. As polícias de natureza gendarme, que são as polícias de natureza militar, gendarme, do francês homens de arma, ainda que a estrutura seja semelhante às Forças Armadas, a lógica e completamente diferente, você espera que o tenente em campo seja articulado o suficiente para... ele é a mais alta patente operacional, então se você tem um atendimento simples assim, duas pessoas beberam e se estapearam ou se você tem uma tomada de cidade, por exemplo, por uma quadrilha que quer... naquele momento, até chegar qualquer reforço, o maior nível operacional em campo é o tenente, ele tem níveis de supervisão, mas é o tenente que tem ali a distribuição, então ele precisa ser... ele é um chefe de polícia naquele momento, ele tem que ter capacidade. Para você ter uma ideia, assim que eu me formei, no meu horário de plantão, aonde eu era o máximo, tinha as esferas de supervisão para ser acionada, eu comandava o policiamento em quatro municípios da grande São Paulo, Itapecerica da Serra, que é um município acho que com 150 mil habitantes, Imbuaçu, eu cheguei... depois de seis meses de formado, eu já era o comandante do policiamento de Jequitiba, respondia a um capitão, que era o comandante da companhia, e aí eu tratava com o prefeito, tratava com a outra autoridade policial em terra, que é o delegado de polícia, então além da formação intensa, você se forma como aspirante e você já exerce uma função de liderança e gestão em polícia de forma imediata. E é o único curso de formação policial do país, porque os delegados em polícia em são formados em direito, prestam concursos de habilitação e se tornam delegados, como o promotor de justiça e um juiz, mas a formação deles é jurídica. Os oficiais da Polícia Militar, eles são os únicos que têm uma formação básica como... hoje tem algumas escolas que já selecionam candidatos que tenham curso e já colocam pré-condição ter a formação superior, mas em São Paulo você entra com segundo grau e é formado para ser policial. Há vantagem nas duas, mas eu acredito que... eu prefiro a formação técnica clássica, e depois...

Luciano Pires: Você trouxe uma perspectiva interessante, como eu não sou do ramo, eu posso exercer a minha ignorância aqui e falar bobagem que eu quiser, porque eu sou ignorante e não tem problema, mas você colocou uma perspectiva interessante que muita gente tem essa curiosidade, porque que não vai o exército dar um jeito e arrumar e cuidar das coisas? Você acabou de falar uma coisa interessante, cara, o exército é uma máquina que é montada para obedecer uma estrutura onde essa autonomia que você falou não existe lá, outra coisa, os soldados do exército, o treinamento deles, cara, é 100% teórico, ele não é treinado na guerra, ele é treinado em situações que vamos fingir que tem um inimigo, vamos soltar uma bomba aqui, vamos fingir que tem tiro, o soldado da Polícia Militar, ele vai para a guerra todo dia, ele está na rua, tem guerra.

João Henrique Martins: Durante a formação a gente tem os chamados estágios técnicos no final do ano, no final da formação você tem os estágios operacionais, e durante a formação você tem algumas operações que são feitas pelos cadetes exatamente para exercer isso, então por exemplo, a gente participa, na época, acho que participa ainda hoje na operação verão, que é quando tem o reforço de policiamento no litoral por conta das pessoas que... as cidades, elas recebem milhões de turistas e ficam um longo período, nesse período, por exemplo, existem vários casos de confronto armado, a primeira prisão que eu fiz eu era cadete ainda, e assim e vários, o primeiro confronto armado foi ainda durante a formação, porque é exatamente isso, você tem o adestramento e treinamento e vão in loco, e aí tem uma característica também importante para distinguir as duas coisas, o exército, como você disse, é uma força poderosa em bloco, que tem a finalidade de destruição, ou você destrói o inimigo que está invadindo o nosso território, ou você destrói a resistência de quem a gente está atacando, é eliminação, tanto é que ao final de um combate, se o general conseguiu atingir o objetivo e perdeu 20% da tropa dele, então ele tinha 10 mil homens e morreram 2 mil, mas ele atingiu o objetivo, isso é motivo de congratulação.

Luciano Pires: Se ele transformou a cidade em escombros...

João Henrique Martins: Ele dizimou, essa é a perspectiva, é a lógica, isso não tem nada a ver com atividade policial, atividade policial... por que que você desfragmenta a autoridade e a capacidade de execução? Desfragmenta ao nível do policial, os dois policiais que estão na viatura, que são dois soldados, eles têm autonomia para parar você, parar o seu carro, ou intervir em uma ocorrência que alguém foi chamado, para no local, ele precisa o tempo todo analisar entre eu estou lidando com um cidadão de bem, pacífico, que fez apenas uma coisa que me chamou atenção, do tipo, passou o sinal vermelho, parece que ele está fugindo, ou então, que está discutindo com a esposa, ou com o colega ali, e está exaltado, e aí por isso eu parei, mas está tudo bem, ou eu estou lidando com os indivíduos que estão com alguns quilos de droga, que tem uma insegurança dele, um batedor de um outro veículo atrás, então eu tenho que abordar você pensando no que está atrás, ou ainda é alguém que está com um armamento para transferir para outro lugar, ou para fazer uma invasão em um cidade, o policial, ele tem essa variação de possibilidades em toda ocorrência, não é em algumas específicas, em todas elas.

Luciano Pires: E não é em um ambiente de calma, é em um ambiente de pressão, que pode explodir a qualquer momento, tem alguém tentando agredir alguém.

João Henrique Martins: Exatamente, então ele precisa o tempo todo avaliar o que que eu estou lidando em fração de segundos no ambiente de pressão. Os militares quando atuam em um campo de combate, óbvio, têm limitações e têm pressão para as suas ações iguais ou piores que a atividade policial, só que os papéis e os atores são mais claramente definidos, então você sabe, é o inimigo do outro lado, ele precisa ser aniquilado, a gente avança, a única situação diferente é a proposta da rendição em algum momento, você não precisa entrar em combate porque ele desistiu, ou tem um falso positivo, na verdade não é a tropa nossa, e pode ocorrer. E perceba, que mesmo na situação de falso positivo, se ocorre uma situação de fogo amigo, em regra, se foi baseado em erro apenas, você não consegue provar nenhum dolo, não acontece nada para quem, por exemplo, se você matou um aliado ou alguém da sua tropa, porque faz parte do direito da guerra. Isso não acontece com o policial, o policial que está em campo e por erro, ele fere ou mata alguém, seja um cidadão ou seja um outro policial, ele vai responder por isso, então ele está submetido à uma situação de pressão, e uma limitação da sua consciência situacional para tomar essa decisão, gigantesca, por isso a necessidade de uma formação tão concentrada, tão aprofundada. Então, essa já é uma diferenciação importante para dizer o seguinte, as Forças Armadas não devem entrar na atividade de segurança, porque a gente perde o que as Forças Armadas nos fornece, como possibilidade de defesa, e não ganha na segurança e ainda corre o risco de fazer as Forças Armadas perderem credibilidade. E também estamos tapando o sol com a peneira, porque se chegou o momento... só faz sentido a intervenção das Forças Armadas em uma situação de grave crise... tem até um termo técnico para isso, que é falência institucional, você tem um momento crônico ali, que a polícia por alguma razão entrou em falência, você dá uma resposta agora imediata, mas ela é um grande band-aid, ela não pode ser a solução.

Luciano Pires: E esse desenho que você coloca aí se aplica... quantos homens têm hoje na Polícia Militar de São Paulo? É gigante, é 80 mil?

João Henrique Martins: É um pouco mais de 80 mil, com déficit, ela já chegou a ter 92 mil, algo assim, ela está com um déficit grande, mas ela precisa... a PM de São Paulo precisa chegar a uns 100 mil, a Polícia Civil algo em torno de 30 mil, 30, 35 mil, também com claro... é o tamanho desse contingente.

Luciano Pires: Me fala um pouquinho dessa diferença de polícia, a militar e a civil, porque tem uma... grita aí fora que tem que juntar, que não tem cabimento, desmilitarizar a polícia, tem que ser só polícia civil, e são dois organismos que funcionam, não sei se o termo está correto, em paralelo, eles funcionam no mesmo ambiente, ao mesmo, com duas dinâmicas completamente diferentes.

João Henrique Martins: Vamos lá agora, esse é o momento das bolas divididas aqui, então vamos lá, olha só, deixa eu até aproveitar e dizer o seguinte, eu fiquei na polícia até 2015, eu não vou te dar uma explicação de policial, eu vou te dar uma explicação de cientista político, especialista sobre a área. Então, só para introduzir porque que eu posso falar sobre isso, em paralelo a minha carreira policial, eu desenvolvi uma carreira acadêmica, então eu estava no último ano da academia de polícia, no quarto, eu fui lá, enfrentei a FUVEST de novo, e fiz graduação em ciências sociais na USP.

Luciano Pires: Ah, você se formou?

João Henrique Martins: Sim. E depois fiz o mestrado e hoje... fiz o mestrado, concluí sempre na área, eu fiz as ciências sociais, a graduação, eu nem cheguei a precisar concluir, no final já, no último ano, eu já fiz o concurso para o mestrado, porque eu já tinha a graduação da polícia e aí...

Luciano Pires: Você era o polícia lá na Fefelest, você está me lembrando de...

João Henrique Martins: Da cena do Tropa de Elite? Eu vivi aquilo não daquele jeito, por que que eu vivi isso? Olha que interessante isso...

Luciano Pires: A turma sabia que você era polícia?

João Henrique Martins: Eu escondia dos dois, eu escondia tanto da Fefelest, quanto da polícia, no último ano na academia, você pode... você tem a liberação noturna, então acaba a aula em torno das 18 horas, 17 horas, você pode ir para casa dormir, volta no outro dia, tem que estar em forma lá 6 e meia da manhã, então eu prestei o concurso no terceiro ano, passei e aí eu fazia a Fefelest à noite, e aí, inclusive, quando tinha que voltar para a academia, eu dormia na casa de um grande amigo meu, que é o capitão Topalian, que hoje trabalha comigo lá no CICC, eu chamo a mãe dele de mãe, porque eu passei quase todo esse ano dormindo na casa dele, porque eu chegava muito tarde, não conseguia ter o horário, entrar na academia, mas enfim, em dado momento, lá no meio do ano, os dois grupos mais ou menos descobriram ao mesmo tempo que eu era policial e que eu era graduando da Fefelest, e aí tinha um coronel, na época era capitão, mas depois virou coronel na academia, que ficou descobrindo, a maioria achou positivo, tudo bem, mas esse disse o seguinte, ele me rotulou de cadete comunista, nós temos um cadete comunista aqui, e de certa forma me perseguiu um período, as piores missões ficavam comigo, o que que você está fazendo na casa do inimigo? E aí a minha resposta, primeiro que eu não entendo que é a casa do inimigo, é uma faculdade, se tem gente lá que não gosta da polícia, e tem, não são poucos, é outra coisa, mas eu tenho que estar lá, exatamente por isso que eu tenho que estar lá. E na Fefelest foi uma época que teve invasão da reitoria, e aí alguém chegou no instituto, tem um policial, tem um infiltrado do sistema aqui dentro. Então, eu era ao mesmo tempo um infiltrado do sistema e um cadete comunista. E eu dizia o seguinte, vocês precisam decidir, porque as duas coisas eu não consigo ser ao mesmo tempo. Então, a necessidade de lidar com o contraditório e com os grupos já foi no primeiro momento, antes mesmo de me formar, então terminou a polícia, continua, desenvolvo a carreira como pesquisador, acadêmico, me liguei ao núcleo de políticas públicas da USP, eu só não emendei o doutorado na época porque eu fui recrutado para ir para a inteligência da polícia, exatamente porque eu tinha essa visão fora da caixa, então... e por que que eu fui para as ciências sociais? Porque eu percebi no período de formação que a gente estudava muito polícia e pouco crime, é como se fosse um médico que... um cirurgião que entende muito sobre abrir as pessoas, estabilizar, mas conhece pouco sobre o tecido cancerígeno que está lá, não sabe tratar. Eu percebi que isso era uma falha na nossa formação. E como eu tinha feito assim, dois semestres de economia antes de entrar, mas não consegui pagar, eu ainda era soldado da Aeronáutica, e aí eu senti a falta da evidência empírica, eu falei, tá bom, a gente está falando que aborda desse jeito, que a gente gere isso, que tem problema, mas quando, como eu aplico isso? Para isso eu preciso dos dados do fenômeno do qual eu quero controlar. E aí a gente era muito... era quase nada de análise sobre o crime, fui atrás das ciências sociais porque dentro das ciências sociais existia a ciência política, e nos meus trabalhos de investigação é quem organiza a estrutura sobre o fenômeno criminal, fui atrás disso. Bem, e aí comecei a estudar tanto o fenômeno criminal, quanto a estrutura de resposta ao fenômeno criminal, quer dizer, como e por que as polícias se organizam para dar resposta a isso. Em paralelo, como eu fui recrutado para ir para a inteligência, ainda como cadete, quando eu falo recrutado é porque um oficial ou alguém da inteligência de aproxima...

Luciano Pires: Tem os olheiros ali?

João Henrique Martins: Diz o seguinte, você tem uns skills aqui que nos interessam, tem interesse? Tenho. E inicia um processo de habilitação, é quase que uma segunda investigação, que já tem um quando você entra para a polícia, sobre a vida pregressa, termina o processo você está recrutado. Então, eu fiquei dois anos trabalhando na atividade operacional assim, no final dos dois anos eu fui chamado para a inteligência, e passei a desenvolver isso também dentro da inteligência, que é um pouco o posicionamento institucional, que é o modelo de polícia adequado, qual que é o fenômeno criminal, o que que é o crime organizado que a gente está falando, o que que é o crime... aquilo que a gente chama de crime comum, incivilidades, nós temos que adequar assim, o remédio ao problema, enfim. Então, corta, volto agora para a tua pergunta, nesse período na atividade de inteligência, e também na formação acadêmica, a primeira coisa que eu fiz foi já iniciar desde pronto estudos comparados, então assim, você só consegue entender a loucura da estrutura policial brasileira, a disfuncionalidade, quando você olha para fora. Então é assim que eu vou começar aqui. Você tem três grandes problemas, tem grandes grupos de problemas criminais que precisam ser enfrentados por uma polícia em qualquer lugar do mundo, o primeiro grupo, incivilidades, que é o que ocupa 70% do tempo da polícia, barulho, briga entre conhecidos não criminais, marido e mulher, irmãos, amigos tomando uma cerveja em um churrasco e aí termina com uma briga, briga de torcida, desde que não seja já como torcida organizada, que aí nós estamos falando de crime organizado, de quadrilha. Então, questões de incivilidades, que tem a ver com desordem, que é o que causa o desgosto na maior parte do tempo na vida social.

Luciano Pires: Você falou que isso é 70% do...

João Henrique Martins: 60 a 70% da demanda que as policiais têm que lidar. Depois você tem atividade de criminalidade que vamos chamar de criminalidade rotineira, criminalidade comum, que é o antigo batedor de carteira, que podia bater a carteira, quando você olhava já era, ou aquele cara que te agredia para bater a sua carteira. O roubo e o furto do veículo, em especial o roubo, porque tem violência, tem agressividade. E hoje em dia então é o roubo do celular, é o roubo do veículo, é o traficante de drogas que tem um crime economicamente motivado contínuo e que parece que ele não é agressivo, mas ele é, porque tenta roubar droga do indivíduo, tenta proibir ele de traficar na frente da sua casa, você vai descobrir porque também é um crime violento. Então, esse conjunto de atividades é o segundo mais intenso que tem uma lógica local, sabe, então assim, esses crimes ocorrem na sua rua, no seu bairro, às vezes dentro da sua casa, eles estão próximos de você, esses dois conjuntos que atendem entre 90, 95, 60, 70% do outro, 20, 25% da criminalidade comum. E aí você tem um terceiro, que também é um grupo grande, que é de criminalidade organizada, que tem desde quadrilhas de sequestradores, roubo a banco, até terroristas, tomada de cidade, grandes traficantes de drogas que fazem o trabalho de fluxo mesmo contínuo, da chegada, são essas três grandes categorias. Como é que o mundo se organiza para lidar com isso? E é algo que nasceu da experiência humana, não nasceu de algum teórico definindo isso, o resultado da experiência humana em democracias consolidadas para enfrentar o crime em si é, você ter uma polícia territorial, o que que é essa polícia territorial? Ela cuida de um espaço que pode ser um bairro, uma cidade, uma província, um estado, mas em regra no mundo todo, ela está delimitada ou por uma cidade ou por um agrupamento de cidades, que no caso do mundo anglo-saxão são os condados, no caso do mundo francófono, nós estamos falando de províncias, aldeias, regiões, que às vezes é um conjunto de municípios. O que que essa polícia faz? Ela é uma polícia fortemente dedicada ao patrulhamento ostensivo, que é tentar pela presença, dissuadir a ação de incivilidade e crime, e ela faz a investigação local. Então, isso é uma polícia territorial. Veja, não faz sentido... faz todo sentido ela ser uma polícia que põe muito esforço no patrulhamento, na ostensividade, na presença, no conhecimento, e o esforço menor é na investigação, porque por exemplo, invadiram a sua casa, se você não fizer uma investigação e nos 30 primeiros dias não conseguir encontrar, você não vai conseguir mais, isso é um pouco meio que o parâmetro em todo lugar, porque você tem que ser rápido, chegou, faz a perícia, tenta pegar as impressos digitais, a investigação já é do time que está ali, faz todo sentido isso, o próprio policial preserva porque o colega dele que está fazendo a função de investigador, patrulheiro e investigador, eles estão trocando de locais em vários momentos, a maioria das policias até coloca o investigador como alguém que é promovido, primeiro ele tem que ser patrulheiro, ele tem que conhecer as ruas. Bem, essa organização polícia territorial, ela é em regra militar, ou no sentido correto do termo paramilitar, qual é o sentido correto? Do mesmo jeito que você fala médico e paramédico, é o sufixo grego que refere-se semelhante a, ele tem alguns elementos, então o que é a polícia militar, que ela vem de origem francesa? Mas existe na Espanha, em Portugal, na Turquia, na Holanda, são as polícias que em regra estão dentro do Ministério da Defesa, têm uma organização militar, porque pode em algum momento ser acionada pelas forças armadas para fazer a função de polícia de controle em caso de guerra, então elas mantêm um vínculo assim, tem a origem na estrutura militar, ela responde a um código penal militar, inclusive. As polícias assemelhados, as polícias paramilitares, elas têm toda a indumentária, toda a estrutura de organização, você olha, você não consegue diferenciar, que é o caso, por exemplo, da polícia inglesa e da maioria das polícias americanas, você inclusive tem a nomenclatura, tem o sargento, quem chefia é o capitão, então você tem essa estrutura por quê? Porque qual que é a função? É a patrulha, é ostensividade, isso é uma estrutura que exige essa disciplina de campo, dois indivíduos, uma coisa super importante, ainda que você atue de maneira desfragmentada, cada viatura tem dois policiais patrulhando as ruas, se ocorre um crime grave, você tem que rapidamente juntar cinco, seis viaturas, na hora que você junta cinco, seis, você precisa da disciplina e da doutrina de atuação militar, que é o adestramento, então você passa rapidamente de dois para dez, não dá para fazer uma reunião para decidir como vai ser feito, automaticamente todos se olham e percebam, quem que está aqui? Tem um sargento? Ele já é o líder, todo mundo olha para ele, sargento, faz o que? Ele, três equipes, um vai pelo flanco, oeste... todo já treinou, já sabe, sabe quem é o chefe, sabe que se ele for ferido ou abatido, quem é automaticamente assume. Então, esse é o grande valor da estrutura militar, tanto é que as forças policiais no Brasil que são eminentemente civis, a Polícia Civil e a Polícia Federal, elas nasceram, os seus grupos táticos, eles foram treinados com ou as Forças Armadas ou com as próprias polícias militares, hoje, inclusive, eles ensinam muitos grupos especiais, como é o caso do Core do Rio de Janeiro, que é uma referência, mas o Ger aqui em São Paulo, mas você olha para eles, você vê militares.

Luciano Pires: Tem um documentário na Netflix, não sei se você assistiu, das bombas na maratona de Boston, tem um filme, filme mesmo, filme com Mark... esqueci o nome dele...

João Henrique Martins: Ruffalo.

Luciano Pires: Não, o outro, ah meu Deus, esqueci o nome dele agora, mas é um filme, conta a história, eu assisti o filme, e fiquei impressionado que eu não sabia detalhe, eu não sabia quão grande foi aquele esquema de dois caras que soltaram a bomba na maratona de Boston. E ao mesmo tempo os caras botaram uma minissérie que é o documentário, então o que o filme contou, eu falei, agora eu vou ver o documentário para ver quanto que os caras voaram lá. Cara, e o documentário é igual o filme, e no momento do cerco do último, um dos caras é morto, o segundo eles conseguem prender, acontece exatamente isso que você falou, a coisa estava tão a flor da pele, que no momento que os caras indicam, talvez ele esteja lá, começa a chegar polícia de tudo quanto é lado, e os caras perdem o controle, de repente alguém dá um tiro, cara, de aonde veio esse tiro? E aquele tiro desencadeia todo mundo atirando e o cara, para, para, para, elas não têm como controlar porque perdeu essa...

João Henrique Martins: E essa é a principal característica das polícias territoriais, porque isso vai acontecer, a característica da polícia territorial é lidar com grande volume de eventos, com imprecisão sobre qual fenômeno você está lidando, começa com o chamado de briga marido e mulher ou briga dentro de casa, quando você chega lá é dois traficantes com fuzil e você... se você tivesse essa informação, a resposta já seria inicialmente completamente diferente, mas você não tem essa informação e só é possível ter quando a primeira unidade encosta, então você precisa desse adestramento, dessa disciplina, dessa lógica organizacional militar ou paramilitar, de novo no sentido correto do termo, porque o uso de paramilitar principalmente na América Latina ficou associado a grupos ilegais irregulares, aqui eu estou dizendo aquele se aproxima ou tem ele como referência, assimilar a. Então, a polícia inglesa, que é uma polícia civil, de status jurídico civil, a maioria das polícias americanas, elas vão seguir se agir corretamente, e elas só se organizam com essa estrutura paramilitar porque ela tem essa necessidade. Pois bem, então esse é um consenso internacional, você pode ir na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá, no Japão, na Austrália, Israel, nas grandes democracias, você vai encontrar isso. Essa polícia, ela pode ser de status jurídico militar ou civil, com a estrutura paramilitar por uma mera razão cultural da origem das forças, daquilo que a gente chama na ciência política de herança institucional, você tem um acúmulo de conhecimento institucional que é importante que seja mantido, tratado, ainda que ele seja modernizado, e de referência para as pessoas. Bem, e aí crime organizado, o crime organizado, a polícia territorial também enfrenta, mas quando ela percebe que ela está lidando com um crime organizado, que em regra tem uma rede de conexão intermunicipal, interestadual ou transnacional, é óbvio que ela precisa de um corpo policial distinto, e é aí que entram as polícias especializadas, ou as chamadas polícias judiciárias. A polícia territorial, ela tem os dois tipos de polícia ao mesmo tempo, tipo só no sentido técnico jurídico, que é a polícia administrativa, estou patrulhando, não aconteceu o crime, posso parar você, polícia judiciária, uma vez ocorrido o crime, ela tem que preparar provas e evidências para o processo penal. E aí é uma atividade inint 01:03:24 que é a parte da investigação, mas tudo isso é feito no corpo de polícia só porque veja, a investigação é quase que uma capacidade cognitiva, o policial salta da polícia administrativa, a polícia judiciária...

Luciano Pires: Ele nem percebe.

João Henrique Martins: Ele nem percebe, exatamente, eu cheguei, estou avaliando aqui o que que o Luciano está fazendo, de repente o Luciano saca uma arma, corre, eu tenho segurar ele, eu vejo, tem uma pessoa presa na sua casa, que você é um sequestrador, então eu tenho a arma, eu já tenho que conectar você com ele, e essa evidência já é constituição de prova, eu preciso preservar o ambiente, então ele salta nesse momento, então não faz o menor sentido você separar o que é apenas conceitualmente separado, não faz nenhum sentido você separar do ponto de vista físico, material do processo de polícia, porque o processo é um só. O que que alguns países fazem? Como eu preciso lidar com crime organizado, e aí a lógica é completamente diferente da polícia territorial, vamos fazer aqui a diferença entre os dois, grande volume de ocorrências, eu tenho imprecisão do evento, tem que encostar. Crime organizado, que essa é outra lógica, polícia especializada, que eu vou chamar aqui de... eu vou chamar de polícia especializada, depois eu explico que todas essas especializadas são necessariamente judiciárias, um número muito menor de ocorrências com alta precisão de qual é o evento, em regra, inclusive, a polícia territorial envia esse evento para a polícia especializada, trombei com uma coisa aqui, fui ver uma coisa, mas acabei tropeçando em uma coisa que é mais complexa, ele vai lá e chama a polícia judiciária. É aquilo que a gente vê nos filmes quando está a polícia local, o cara vem, vem o agente do FBI, o cara mostra ali a carteira e diz, é comigo.

Luciano Pires: É o que acontece nesse documentário, exatamente isso.

João Henrique Martins: Muda a jurisprudência. Volume menor. Segundo, tempo de investigação, quer dizer, na polícia territorial é um tempo curto, então as equipes que investigam, investigam coisa, mesmo um homicídio, é um homicídio que você consegue explicar rápido, porque os elementos estão ali, não, agora morreu um promotor de justiça que caiu do prédio, a gente já descartou todas as evidências, mas parece que é crime organizado, a ocorrência vai lá para a especializada. Então, aqui na territorial, a investigação é curta e também com volume grande, 30, 60, 90 dias no máximo, lá são investigações que duram anos. E algumas, elas permanecem, porque elas vão tendo uma sequência de operações, lembra da Lava Jato? Trigésima... e a terceira coisa mais importante é o mindset do homem que está empregado, do homem e da mulher, óbvio, ali que está empregado, o mindset de quem atua de polícia territorial é o guerreiro, é o cara que assim, dopamina lá em cima, o tempo todo assim, resposta rápida, que quer resolver aquilo rápido, volta, o homem de polícia judiciária é outra lógica, é o cara de extrema resiliência, esse cara não cansa de pensar naquele assunto, de investigar o mesmo caso, então ele pensa muito, trabalha muito nos bastidores, para dar a operação. Aí vem a operação, é aquela pancada, é parecido com o que vem aqui do pessoal, mas percebe que o mindset é completamente diferente? E aí você como é alguém que atuou no mercado como gestor, sabe que se você trocar as bolas aqui nesse jogo, você perdeu os dois. Então, o que que muitos países fizeram? Eles transformaram... então você pode ter a polícia territorial, essa mesma polícia territorial, ela pode ter um departamento de polícia judiciária especializado, que é o cara que chega na ocorrência com a carteira, bem, agora é comigo, pode ser da mesma polícia, é o caso, por exemplo, na França a Gendarmerie. Eles têm o departamento Gendarmerie e a polícia nacional são as policias que fazem o policiamento territorial, a polícia nacional é de status jurídico civil, a Gendarmerie de status jurídico militar, a única diferença é que as grandes cidades, Paris, são Marseille, as grandes cidades são patrulhadas pela polícia nacional, e a Gendarmerie faz em todo os demais, porque a ideia é militar, então ele cuida mais do território do que do volume de pessoas, e a polícia nacional está mais preparada para atuar com grande volume de adensamento populacional. Bem, você não tem uma terceira polícia que vai fazer o papel de polícia judiciária, você tem dentro das polícias, um departamento que é quase uma outra polícia dentro, mas você passa aquela ocorrência para ela, perfeito? Mas outros lugares, como os Estados Unidos, você tem várias polícias que são judiciárias, pela lógica anglo-saxã, eles preferem não só fazer uma outra polícia, como segmentar ela por tipos, então você tem o FBI, que cuida assim da maioria dos crimes federais, cuida de terrorismo interno, mas você tem a DEA, que cuida especificamente do tráfico de drogas, você tem a ETF, que cuida de tráfico de armas, contrabando, dinheiro falso, são todas elas polícias especificamente judiciárias, aí são policiais judiciárias que as polícias locais levam essa ocorrência para ela ou elas na investigado produzem. O que que... uma característica marcante da polícia judiciária é que você, nós, como cidadãos assim tratando na vida, você não tem contato com essa polícia, ela não é a polícia de atender um balcão, de você ter um problema eu vou até ele, é ao contrário, é ela que quando precisa vem até você ou você foi no primeiro balcão, que é na polícia territorial e ela te leva. Bem, dito isso, nós temos então dois modelos, claro, polícia territorial pode ser militar ou civil, mas necessariamente paramilitar, e polícia judiciária, essa sim sempre civil, porque é uma polícia investigativa, por exemplo, a polícia judiciária portuguesa em regra é um juiz ou desembargador que comanda ela, já aposentado, porque ela tem essa característica mesmo de ser processual, ou a figura do FBI, do agente federal. Bem, o mundo inteiro é assim com uma exceção, essa organização que eu acabei de descrever, essa lógica territorial, judiciária é assim no mundo inteiro, com uma exceção, adivinha aonde.

Luciano Pires: Deixa eu ver...

Luciano Pires: Você está ouvindo o LíderCast, que faz parte do ecossistema Café Brasil, que você conhece acessando mundocafebrasil.com, são conteúdos originais distribuídos sob forma de podcasts, vídeos, palestras, e-books e com direito a grupos de discussão no Telegram. Torne-se um assinante do Café Brasil Premium, através do site ou pelos aplicativos para IOS e Android, você prática uma espécie de MLA, master life administration, recebendo conteúdo pertinente de aplicação prática e imediata, que agrega valor ao seu tempo de vida, repetindo, mundocafebrasil.com.

João Henrique Martins: No Brasil foi feito uma maluquice no desenho institucional que transformou esse processo que eu descrevi, patrulhamento, investigação local, investigação mais complexa, que são processos policiais naturais, ele pegou aquilo que era no mundo das ideias, o teórico, a polícia administrativa, a polícia judiciária e transformou isso em decisão política, então você faz polícia administrativa, você faz polícia judiciária, quem faz a polícia administrativa no Brasil? Polícia Militar, quem faz a polícia judiciária? Polícia Civil, mas e a polícia territorial? Não, ignora isso. E a polícia judiciária... então, qual é o desenho? Hoje você tem como polícia territorial, ou seja, aquela que atende grandes volumes, tem que fazer investigações rápidas, tem que ter esse mindset do policial local, você tem a Polícia Militar e a Polícia Civil, as duas fazendo a mesma atividade com rompimento de competência absolutamente esquizofrênico, porque assim, o policial militar, ele é responsável por patrulhar as ruas e evitar o crime, no entanto, quando o crime ocorre, o cara foi lá com arma de fogo, te enquadrou no farol, está levando teu carro e o celular, nesse momento já há uma discussão, porque se o crime está ocorrendo, é da Polícia Militar ou da Polícia Civil? Em que momento acaba a polícia administrativa e começa a polícia judiciária? Cimo na prática não dá para fazer essa divisão, é óbvio que a Polícia Militar atua e faz a chamada, repressão imediata, por quê? Em tese, a Polícia Militar só faz prevenção, e a Polícia Civil só faz repressão, que é depois do crime ocorrido.

Luciano Pires: Prevenção e repressão.

João Henrique Martins: Juridicamente você coloca esses dois conceitos que são absolutamente imprecisos, ninguém usa fora do Brasil esses dois conceitos para dividir competência, porque eles são momentos, eles são quase que condições psicológicas. Então, está fazendo a prevenção, em que momento sai da prevenção e vai para a repressão? Porque diante do enquadramento do criminoso contra a vítima, o pessoal vai falar assim, olha, desculpe, falhei, não consegui prevenir, mas eu não posso reprimir porque a lei diz que quem pode fazer isso é o policial civil.

Luciano Pires: O cara sacou a arma, agora não é mais comigo, agora espera chegar a Polícia Civil...

João Henrique Martins: Percebe? Então, vou lá fazer a repressão óbvio. Aí mas não, mas ela também faz a repressão imediata, mas a princípio também pode fazer repressão imediata, e aí você pega, policial vai lá e atua, prende o cara, consegue prender ou entra em confronto armado com o criminoso, tem uma situação de confronto, o criminoso é baleado. Bem, na hora que ele atuou, você concorda comigo que é o mais difícil, atuar, conter o criminoso, proteger a vítima, estabilizou, nesse momento, ele deixa de ser policial, por que que ele deixa de ser policial? Porque apesar de ser um agente público capaz de usar a arma de fogo, ou seja, exercer o monopólio legal da força, que está lá no contrato social para agir, tem um mandato legal, estado colocou uma farda, um uniforme nele para fazer isso, nesse momento, ele não tem capacidade jurídica para registrar o fato, ele não pode fazer, por exemplo, a prisão do criminoso, porque a prisão você tem que levar para a outra polícia, e aí começa todos os problemas, por quê? Porque veja, você, Luciano, está lá, policial, entrou em confronto, colocou a sua vida em risco, você como agente público, como inclusive agente estatal, que tem essa figura, porque você naquele momento é o estado, assim como o juiz é o estado quando há uma sentença, não é o João ou a Maria, o policial João ou a Maria, ele é o estado na hora que ele usa a arma e intervém. Aí nesse momento que você tomou as decisões e elas são feitas em segundos, você tem que levar para uma outra autoridade, que é o delegado de polícia, que vai fazer olhar para isso e vai analisar se o que você está falando faz sentido, se o que você está falando é o que ele entende que ocorreu de fato, para colocar no papel e para prender o criminoso, ou se o criminoso foi morto durante essa ação, para ele enquadrar isso como um caso de fato de legítima defesa de terceiros. Olha a loucura, por que o que acontece?

Luciano Pires: Uma subjetividade brutal.

João Henrique Martins: Sem dúvida, e aí assim, quem está certo, está errado nessa história? Em regra, você vai descobrir... mas de fato, os dois são vítimas, o policial militar que fez a ação e o delegado, por quê? Porque o policial tem toda razão em ficar revoltado com outro policial que não estava na ação operacional, avaliar a atividade dele, quando o policial quando atua está olhando para duas coisas, está olhando para a lei, devo atuar ou não, a lei obriga o policial a atuar, não é uma escolha dele não atuar frente a um crime em cometimento.

Luciano Pires: Se não ele está prevaricando.

João Henrique Martins: Exatamente, então ele comete o crime, então ele não tem escolha, tem que atuar. Então, ele tem a pressão da lei, e ele está lá para isso, para aplicar a lei, e do outro lado você tem a própria destinação fim, eu estou lá para preservar a vida da vítima, eu preciso atuar, ele sai de lá, quando ele chega no DP, ele deixa de ser policial, ele passa a ser como qualquer um outro, o delegado tem que avaliá-lo desse jeito. E é óbvio que entra em conflito, porque é um delegado que também tem toda a razão de fazer uma avaliação porque é o nome dele ali, se o delegado... se o policial mentiu, por exemplo, se o policial cometeu um abuso e mente, é o delegado que responde, se o policial cometeu um erro e ele não consegue precisar isso, deixar claro, ainda que o delegado concorde com o que aconteceu, ele está na mesma versão, mas tem um erro, olha que situação desgraçada que a lei impõe para essas duas autoridades, esses dois agentes que estão lá para fazer o trabalho deles, nos proteger.

Luciano Pires: E aí você mete uma audiência de custódia no meio do caminho.

João Henrique Martins: Daí para a frente só piora.

Luciano Pires: Só está piorando.

João Henrique Martins: Exato. Então veja, isso não existe em nenhum lugar do planeta, não existe essa figura de um policial apresentar uma ocorrência para outro policial, ainda que ele tenha um outro status, o que existe é óbvio, um controle hierárquico dentro da sua própria instituição, mas o policial fez, ele registra, ele envia para o Ministério Público ou apresenta para o juiz, existem audiências de custódia no mundo inteiro, só que ela não avalia só a ação policial, ela avalia a ação policial e o crime, então ela é na verdade uma audiência de instrução, então a prisão foi ilegal? Se foi ilegal, pau no policial naquele momento, se foi legal, parabéns ao policial e vamos iniciar a instrução, talvez transforma a prisão em flagrante em prisão preventiva, que tem prazo, que é uma prisão mais forte, então aqui no Brasil primeiro a gente criou um sistema esquizofrênico que na verdade é um sistema disfuncional de polícia, porque é esse momento que tem o conflito, conflito mesmo, essa é a hora que a Polícia Militar e o policial civil brigam, aí a Polícia Civil recebe uma investigação do qual ela é responsável sem que ela estava na eclosão, sem que ela tenha sido primeiro, então a Polícia Civil pode dizer o seguinte, toda a área... a área do crime, me fugiu o termo aqui agora, a preservação do local do crime não foi respeitada, não tem como fazer a investigação, e assim, aí fica um jogando a culpa para o outro, até porque eles são rivais, porque a estrutura é mal feita, a estrutura foi desenhada para ser impossível eles terem uma boa relação quando está em atividade operacional, quando deveria ser ao contrário. Então, esse desenho, ele fez uma cisão aonde naturalmente ela não existe, então é óbvio que tem o conflito o tempo todo, bem então o que cabe a Polícia Civil? Fazer as investigações, em quais casos? Todos, tanto na polícia territorial, quanto no crime organizado e a estrutura. O que cabe a Polícia Militar? Fazer o patrulhamento e a prevenção. Quer dizer, essas coisas são bonitinhas na lei, mas na vida real não funciona, razão pela qual você vai encontrar a Polícia Militar invadindo competência da Polícia Civil e fazendo investigação, que vai chamar de outra coisa, mas ela vai fazer obviamente a investigação, você vai encontrar a Polícia Civil invadindo competência da Polícia Militar e colocando, por exemplo, policial ostensivo na rua, e ela vai fazer isso porque ela precisa fazer isso, porque se ela é territorial, ela precisa ter algum tipo de policiamento, de imposição da força naquele local, ainda que seja só para proteger o DP ou as ações quando eles saem. E aí você tem um segundo momento de conflito entre as polícias, então as polícias gastam mais tempo e energia fazendo essas disputam institucionais, e a gente paga a mais por isso, porque na maioria dos estados, principalmente aqui em São Paulo, nesses 30 anos de PSDB, qual que é a atitude do PSDB? O PSDB não resolve problema nenhum, ele fala assim, se acomodem, em regra o que ele faz, se eu for comprar um equipamento para PM, eu tenho que comprar para a Polícia Civil, mesmo que não faça sentido para a Polícia Civil, então vamos comprar alguma coisa para a Polícia Civil, tem que fazer para a PM, mesmo que não faça sentido para a PM, entende? Então, olha a loucura que a gente construiu, isso é sem dúvida nenhuma um dos três pilares das razões pelas quais a gente tem o péssimo desempenho na proteção das pessoas no controle do crime, ainda que as polícias trabalhem muito, produzam muito, mas o sistema é disfuncional, então para ficar nesse exemplo que eu dei, o policial leva, sei lá, uma hora nunca, mas diante de um crime em andamento, ele vai levar meia hora, 20 minutos para conseguir chegar e prender o criminoso, aí ele chega na delegacia de polícia, ele leva 6, 12,  24 horas para fazer prisão em flagrante. O delegado com uma equipe de três investigadores, por exemplo, está lá na delegacia, aí esse delegado que está fazendo lá, tem uma fila para esse fazer esses registros, ele passa anos da sua vida só fazendo papel de cartório, que é registrar a ocorrência, tomar a decisão, e não fazer o trabalho essencial da polícia, que seria a investigação.

Luciano Pires: Onde está o valor?

João Henrique Martins: Exatamente, onde está o valor? E aí aonde está principalmente a razão pela qual a sociedade constituiu uma polícia judiciária. Então, no Brasil a gente tem a única polícia judiciária que atende balcão no planeta, entendeu? Que você vai lá e encontra... você não tem um balcão para ir na polícia judiciária portuguesa, no FBI não tem um balcão lá para você registrar uma ocorrência, você vai chegar, você vai dizer isso, ele vai falar assim, vai para a polícia territorial. Então, e aí isso foi ocorrendo, foi passando, e a gente... então a razão do conflito não é porque uma é militar e outra civil, a razão poderia ser o contrário, inclusive, podia ser as duas militares...

Luciano Pires: Esse desenho, o Brasil inteirinho é assim? Por lei, por constituição...

João Henrique Martins: Na constituição, o artigo 144, a estrutura policial brasileira é constitucional, a execução é estadual.

Luciano Pires: Se eu for no Rio Grande do Sul e pegar os brigadianos lá é a mesma coisa.

João Henrique Martins: É a mesma coisa, o que vai ter a diferença é o tamanho das polícias...

Luciano Pires: Mas a dinâmica é a mesma coisa.

João Henrique Martins: Exatamente, principalmente as limitações legais.

Luciano Pires: Quer dizer, isso é um impacto brutal já eficiência, na eficiência da polícia, no custo desse sistema que fica caríssimo, e nessa bateção de cabeça, e aí começa a explicar aqueles números malucos que a gente vê aí, me corrija se eu estou certo, ontem eu fiz um bate papo aqui, a gente falou disso aqui, a quantidade de assassinatos que são desvendados no Brasil, dizem que são 8% do que acontece.

João Henrique Martins: É, isso contribui, porque como eu falei, boa parte do esforço da polícia judiciária está em registrar ocorrência e não investigá-los, e aí outra, a Polícia Militar também registra, por mais que o registro dela não tenha importância para a investigação, ela faz o registro dela, aí você compara os dois, estão idênticos, com alguma diferença ali, então... desculpa, são idênticos com pontuais diferenças, que não são significativas em termos de relato do caso, ele contribui para isso no sentido que ele captura recursos que deveriam estar destinados à investigação, e ele também retira recursos do patrulhamento, a gente trabalhou ali no Entre Lobos, eu e o Mota fomos consultores do documentário, o capítulo dois, ele trata, os policiais começam a relatar exatamente isso. Então, você imagina o seguinte, você pega um município aqui da grande São Paulo, em determinado horário tem 5 viaturas, 5 viaturas patrulhando, um status bom, 5 viaturas em alguns bairros assim cobre razoavelmente. Aí as 5 viaturas, eles são extremamente eficientes, o que que seria o máximo da eficiência do patrulhamento preventivo? Você abordar um criminoso antes dele cometer um crime, aí você aborda, você não prende ele por ter matado alguém, por ter roubado, você prende ele pelo porte ilegal de arma, esse é o suprassumo, aí imagina que os 5 consigam fazer isso, vou melhorar esse exemplo, 3 conseguem pegar porque tinha arma de fogo, um porque ele era um membro de crime organizado e estava foragido, e o outro porque ele era o estuprador, estava foragido. Polícia fez seu papel, pegou os 5, levou para o DP, neste momento forma-se uma fila no DP, e os policiais não podem não ir para o DP, porque se ele identificou um crime, ele não pode ficar esperando, porque aí você pode... ele pode estar fazendo uma usurpação de função, que é, então por que que você segurou ele? Você está querendo investigar? Isso e aquilo, começa a discussão. Então, hoje se ele cumprir exatamente a norma, os 5 vão para o DP, fazem uma fila e acabou o patrulhamento na cidade.

Luciano Pires: E não pode largar o bandido lá, tem que ficar, ele está junto?

João Henrique Martins: Tem que ficar lá.

Luciano Pires: Se durar 4 horas, o policial que estava na rua, está lá dentro.

João Henrique Martins: Exatamente, aí você fala, não, mas por que que não cria uma medida incremental, uma gestão para deixar o policial lá, qualquer medida incremental nesse sentido, você só transfere a insegurança jurídica, hoje a insegurança jurídica está com... e o impacto da gestão está na Polícia Militar, vou ficar com o preso aqui, posso ser... o advogado dele pode lá no futuro dizer que ele sofreu tortura, porque ele ficou lá no guarda preso, o famoso chiqueirinho ali atrás da viatura tantas horas, ele até pode alegar, vai ser difícil, mas ele pode, e o policial pode até responder um processo por isso, mas eu não tinha outra coisa a fazer, fiquei ali. Aí a insegurança jurídica está do lado do policial, eu não vou para outro lugar, porque eu não quero ser acusado e usurpação de função, e eu também vou manter o preso aqui, porque se ele fugir, aí eu respondo. Então, eu vou manter ele aqui e eu não vou por o meu preso em uma cela da Polícia Civil, porque eu ainda não apresentei formalmente, e a Polícia Civil também não vai querer receber porque formalmente não recebeu, porque não é simplesmente receber o indivíduo, o delegado precisa avaliar se realmente é um crime com prisão preventiva para ele receber o preso, se não é ele que comete o abuso. Então, se você comete uma medida incremental, cria uma sala para deixar, para a viatura ir rápido, sem mudar a estrutura, ou seja, sem mudar a constituição, você só está transferindo de lado a insegurança jurídica e o impacto na gestão, é por isso que eu o tempo todo nomeio isso aqui como... foi criado um sistema disfuncional e é esquizofrênico, porque você simplesmente não tem solução. A solução é mudar a lei, então qualquer medida aqui você transfere e do mesmo jeito, você tem uma situação de baixo custo para o crime, porque isso diminui a capacidade de produtividade das duas polícias, no caso da Polícia Civil, você vai enxergar isso com um menor número de investigações, no caso da Polícia Militar, você vai enxergar isso com um menor número de horas de patrulhamento, de destinação do policial.

Luciano Pires: Policial na rua.

João Henrique Martins: Não faz o menor sentido isso, Luciano, não faz o menor sentido isso. Se a gente abre uma discussão nesses termos e perceba que o início da conversa, eu falei, eu vou buscar isso lá fora, porque se eu começo a discussão interno, as próprias polícias não conseguem enxergar isso, porque vai ter o sindicato dos delegados de um lado, e o sindicato dos oficiais da PM do outro, brigando porque cada um vai querer puxar para o seu lado, então só dá para enxergar isso quando você faz uma perspectiva de fora, por isso que hoje na universidade eu estou filiado como pesquisador do Instituto de Relações Internacionais da USP, onde eu trato de segurança, e eu puxo essas referências internacionais, eu tive duas experiências internacionais como policial, eu fui para a Europa em 2007, foi um trabalho de cooperação entre Brasil e União Europeia, onde a gente fez um curso aqui durante um ano, juízes, promotores de justiça, delegados de polícia, oficiais da PM, o curso foi durante um ano, os primeiros colocados de casa instituição e do curso iriam para lá, eu fiquei como primeiro colocado geral do curso, e aí passamos um pouco mais de 40 dias fazendo trabalho in loco lá, acompanhando o promotor de justiça, o policial investigador.

Luciano Pires: Em que lugar da Europa?

João Henrique Martins: Portugal e França. E aí foi quando explodiu aquilo, eu já vinha estudando isso, mas não tem nada a ver com o que a gente está fazendo ali, aí eu mergulhei, aquilo que eu fiz pela polícia, porque foi um trabalho de cooperação, eu já estava na inteligência na época, então fiz um trabalho, inclusive com as agências de inteligência em paralelo, fui conhecer como funcionava das instituições portuguesas e francesas, que não só me permitiram perceber esse desenho, que a gente tem que olhar de fora para dentro, como me ajudou a construir aí pensando mesmo em controle do crime, e começar a pensar as políticas, em regra as políticas de segurança, elas precisam corrigir em algum nível essa disfuncionalidade para começar a ter algum efeito. Ainda que seja em nível incremental e não estrutural, quer dizer, você não muda a lei, muda alguma coisa, faz até uma coisa no limite da legalidade, dentro da estrutura, não estou falando de cometer abuso, estou falando na divisão de competência entre as polícias, você força um pouco para tentar ficar próximo do que é feito no mundo inteiro. Então, quando eu fui para fora, eu fiz um curso, na verdade foi um trabalho de cooperação entre Brasil, governo brasileiro e a comunidade europeia, que ela trouxe juízes, promotores de justiça, delegados de polícia e oficiais da PM de São Paulo e do Rio, a gente ficou um ano estudando dentro da universidade um trabalho de organização policial, estrutura legal dos dois, e no final, os primeiros colocados de cada instituição de cada estado, foram para a Europa, a gente passou um período lá estudando in loco, como é que essas quatro instituições atuavam, Portugal e França. E aí isso foi extremamente esclarecedor, porque por exemplo, você lembra isso, foi em 2007, você lembra que em 2006, em 2006 a gente teve aqueles grandes ataques do PCC em São Paulo, eu estava no gabinete de crise que tratou aquela crise, 2006 a 2013 eu estive no círculo de gabinetes de crise que tratam isso, você tem o gabinete de crise principal, que fica na secretaria, tem o das inteligências, operações, eu estava nesse círculo, 6 a 13 eu estava em todos, então eu fui lá com essa bagagem já, olhando. E em paris tinha acabado de ocorrer algo em dimensão da crise, semelhante, mas não em modus operandi semelhante, que foi uma queima assim de mais de 2 mil carros por conta de um conflito na periferia de Paris, especificamente ali em cité Saint-Denis, a intervenção da polícia era em dois jovens, acho que se não me engano eram ou traficantes ou estavam roubando, eles entraram dentro de uma casa de energia, e foram eletrocutados porque se colocaram nisso, e aí virou uma revolta, os bairros viraram, mais de 2 mil carros queimados. A gente foi na unidade policial que é a companhia, que seria o distrito policial, naquele local, conversamos com o chefe de policial ali, com os policiais, encontrei uma série de correspondências com o que a gente trata, e aí o fato de ser alguém oriundo da periferia, de ter trabalhado na periferia, não era só um oficial de inteligência naquele momento, um estudioso, então eu tinha elementos para fazer a comparação, nós estamos falando da mesma coisa, nós estamos falando absolutamente da mesma coisa, ela tem manifestações distintas, mas a resposta estrutural, aí foi quando eu vi que a resposta estrutural, o desenho estrutural nosso ele é completamente disfuncional, se você fizer tudo certo você não faz policiamento, em outras palavras, é o exemplo que eu dei, se todo mundo na primeira hora... são 12 horas em regra de turno de serviço, se na primeira hora todo mundo for eficiente, vai todo mundo para o DP, fica parado, o DP não faz mais nada, é uma loucura.

Luciano Pires: Você está me lembrando da operação padrão da polícia no aeroporto, se a gente seguir o que é a regra, para, cara, aquilo não funciona.

João Henrique Martins: Exatamente, em momento de greve.

Luciano Pires: Isso aí, operação padrão, faz como está na regra.

João Henrique Martins: Só que muito pior do que a operação padrão, porque na operação padrão você ainda vai parar o aeroporto, mas você vai aumentar a produtividade, no final ele prendeu mais gente que estava com contrabando, na disfuncionalidade da polícia não, porque você tirou o cara do lugar onde ele... os 5 flagrantes do dia não mata o que ele poderia fazer se tivesse trabalhando corretamente, mesmo com o desenho ruim. Bem, e aí a outra experiência que me ajudou nisso, foi em 2012 por conta da... eu fiz um trabalho, eu fui treinado pelo FBI sobre financiamento do crime organizado e terrorismo, eu fiz um trabalho...

Luciano Pires: No FBI, lá nos Estados Unidos?

João Henrique Martins: Não, aqui na... a gente... eu não sei se é uma base, mas era um trabalho de cooperação dentro de uma unidade policial aqui no Paraguai, porque veio uma equipe deles, uma das principais equipes de análise financeira, de atividade criminal, para instruir tanto a gente, então tinha um time da Polícia Federal, tinha eu pela Polícia Militar, e tinha o Senadi, Senadi é a secretaria anti drogas do Paraguai, que é a polícia mais confiável e mais eficaz deles, junto com o Ministério Público, eles trabalham juntos, e a ideia também era fazer essa cooperação no cone sul aqui, a gente estabelecer esses contatos. Foi muito importante isso para mim, porque foi a primeira vez que eu enxerguei aquilo que virou o core principal do meu trabalho, esse é o primeiro de pensar polícia, depois pensar crime, porque a gente imaginava que ia estudar crime financeiro, corrupção e tal, ele falou assim, todo crime é financeiro, tirando os passionais, certo? Os paraguaios, certo. E nós no Brasil, fale-me mais. Porque a gente está acostumado aqui com roubo, a gente olha o tipo penal, o roubo, o tráfico, para que que o indivíduo trafica, para que que o indivíduo rouba um produto? O crime financeiro, o crime de corrupção não é o principal, o principal é o volume de dinheiro que é adquirido com os produtos ou os serviços que são adquiridos de forma ilegal, esse é o objetivo do traficante, então assim, a gente inviabilizar o uso em especial, o uso do dinheiro, e em especial o uso legal do dinheiro, a gente consegue conter boa parte do crescimento do crime, quer dizer, mais importante do que você investigar, prender, prender em flagrante o patrulhamento, é você... mas não, tão importante quanto isso é você inviabilizar que aqueles que passaram por  você não usem o dinheiro. Aí os americanos começaram a explicar isso para a gente, fazer a gente... enxerga o criminoso como um empreendedor, e é muito bom, que é o estilo anglo-saxão de estudo que é sempre link in case, você começa no case e vai para a teoria, por isso que as teorias são boas no mundo anglo-saxão, a ideia da evidência empírica é uma necessidade premente o tempo todo, então o jurista americano, por exemplo, ele olha para o caso empírico para teorizar, não é igual o jurista latino, em especial o brasileiro que tira uma ideia da cabeça, sem nenhuma comprovação, sai defendendo aquilo, vira uma tese, e aí daqui a pouco isso vira uma lei. Bem, e aí eu comecei a estudar essa coisa da economia do crime a partir dessa perspectiva, primeiro a gente fez um trabalho bem interessante de entender os casos, quando eu voltei para a inteligência, eu iniciei em um setor que tratava só sobre disso, vim com um projeto até para construir um laboratório de lavagem de dinheiro na corregedoria da polícia, acabou não indo para a frente, enfim. Isso foi 2012, passado um ano e meio eu pedi afastamento da polícia, porque aí meio que aquilo ficou insuportável, aquilo para o qual eu fui chamado na polícia, começou a ser um problema, eu fui chamado porque eu pensava fora da caixa, porque eu olhava para fora, construía soluções sólidas em termos de resposta, de desenho institucional, só que exigia mudanças.

Luciano Pires: Incomodava o sistema todo.

João Henrique Martins: E aí eu acabei saindo da inteligência, fui para o batalhão de policiamento, fiquei três meses, pedi afastamento para descansar mesmo, porque eu fiquei de 6 a 13 ali. Só que nesse período de pedir afastamento, o ex-secretário de segurança pública, Ferreira Pinto, que foi secretário de assuntos penitenciários, depois de segurança, ele naquele momento estava se conectando à FIESP, e aí me convidou para ajudar ele a organizar um departamento lá de segurança. A gente começou a conversar, antes de pintar isso, na verdade, ele também... ele foi para a FIESP, logo depois ele saiu para poder organizar o plano de governo do então candidato a governador Skaf, estou falando em 2014, e aí eu fui com ele estruturar isso, fiz a base lógica do plano todo, a coisa foi, eles acabaram se desentendendo, ele e o Skaf, ele não ficou até o final da campanha, eu fiquei, foi o primeiro contrato, não era nem essa a ideia, eu queria tirar um período sabático mesmo, descansar, mas acabou emendando isso, e logo depois desse trabalho, o diretor de segurança me convidou para organizar uma estrutura da FIESP que respondesse ao crime que afeta a indústria, lá eu organizei, eu falei assim, a lógica aqui que vocês têm que olhar é a atividade, o mercado ilegal que se forma em razão do crime, então tem uma parte do mercado de eletrônicos, de veículos, de cigarro que está na mão do crime, e ele é o seu principal concorrente, aí eu desenvolvi uma metodologia para mensurar isso a partir dos dados de crime, e criamos, e fiz a primeira pesquisa de vitimização da indústria do país, ocorreu em 2016 por meio da estrutura da FIESP, e aí a gente começou a conversar mais com o mundo economista, não só policial, direito. O trabalho deu tão certo, e a gente conseguiu constituir ele de uma forma que dentro dessa minha rede de policiais e acadêmicos, é muito comum nos Estados Unidos e na Europa, o policial se aposenta e vai ser consultor de organismos internacionais para tratar do tema, não existe essa barreira ideológica que existe no Brasil, e aí com vários que eu conheci nesse momento, que já estavam ou aposentado ou para, o trabalho que nós fizemos aqui, que foi o anuário de mercados ilícitos, o primeiro do gênero no país, a gente fez uma versão em inglês, passou para eles, os caras falaram, fantástico o que vocês estão fazendo, porque a OCDE, para quem não conhece, a OCDE é a ONU dos países ricos, destinado só a economia.

Luciano Pires: Onde o Brasil está tentando entrar, bateu na trave.

João Henrique Martins: É, ela viabilizar negócios, mercado, ele falou assim, esse problema é tão crescente no mundo, porque a globalização, a redução do custo de transporte, que é o principal custo de transação em um negócio, como é que você faz o teu produto chegar do outro lado do mundo, ele impactou tão fortemente o crime, que ele já é identificado pelas organizações internacionais como um problema criminal de fato, desculpa, como um problema econômico de fato, é um concorrente. Eu falei, não, cara, eu sei disso, eu estou estudando exatamente isso, conversando com o colega, eu falei, tanto é que o mercado ilegal de cigarro na Europa e nos Estados Unidos ocupa 10% do mercado, no Brasil, mensurando aonde tem dados mais confiáveis, São Paulo e Paraná, ele ocupa em torno de 50, 60% do mercado, o mercado de eletrônicos no Estado de São Paulo 12% é operado por uma empresa chamada crime, então...

Luciano Pires: E isso não está no PIB.

João Henrique Martins: E isso não está no PIB, Olha só, eu organizei esse dado com a equipe em 2015 para 16, lá a gente já previu assim, esse problema, ele está em crescimento, por mais que as polícias prendam muito, como a resposta estrutural, que aí sim é o nosso grande problema no país, que é a resposta da legislação penal que é dada a esse, ela não incapacita o crime, incapacitação e dissuasão são os dois itens que produzem controle do crime, esse conceito nasce da teoria econômica do crime, do economista Gary Becker que ganhou o Nobel exatamente por apresentar o comportamento penal dentro de outros comportamentos racionalísticos, e que foi ignorado no Brasil até hoje, esse postulado é organizado nos anos 60, ele ganha o Nobel em 92, e a gente agora está fazendo o trabalho de tradução para poder publicar isso, porque até hoje as escolas dos nossos juristas da advocacia criminalista, eles simplesmente ignoram isso, porque ela desmonta toda a tese, desmonta cientificamente toda a tese utilizada na América Latina, mas em especial no Brasil, de que o crime é simplesmente uma questão social e não tem nada de racionalismo. Então, esse desenho... eu falei, não, a gente está colocando isso em prática, eu fiz a pesquisa de vitimização, fiz aqui o desenho, isso faz todo sentido, porque o mundo inteiro olha para isso, mandei para lá, a OCDE nos convidou para integrar a força tarefa, que é a força tarefa contra mercados ilícitos, ela é composta por cinco tipos de agente, governos, polícia, então você tem o assento lá FBI, a Interpol, a Europol, que são as internacionais, o governo propriamente dito, você tem empresas, grandes empresas internacionais que são afetadas pelo crime, por exemplo, as empresas hoje de defensivos agrícolas, elas estão sendo corroídas pelo contrabando, a falsificação defensiva, assim como o cigarro, assim como eletrônicos, você tem associações de empresa e você tem experts que vão, ou universidades, que vão, são cinco atores. Eu representei a FIESP dois anos lá em reuniões anuais lá em Paris, então eu saí de Carapicuíba, deu tudo certo, viu, Luciano, porque eu cheguei lá em Paris na OCDE, fazendo uma apresentação, falando de extrema inovação de método assim, tanto é que o David [Lunan] que é um diplomata americano, especialista no assunto, foi o primeiro presidente dessa força tarefa, é meu amigo pessoal hoje, eu sempre quando trato os eventos, chamo ele, ele veio uma vez aqui já no Brasil a convite da gente, deve vir agora que a gente assumiu essa posição de secretaria.

Luciano Pires: Você consegue estabelecer onde é que está o calcanhar de Aquiles para que... essa teoria que você está comentando, esse trabalho todo que está sendo feito, ele tem dificuldades de implementação, e tromba no sistema que está incomodado, tromba em interesses de pessoas que não querem resolver, tromba no próprio crime organizado que está tudo muito bem preparado para te... e tromba em uma visão ideológica que, cara, se bobear tem um cara que vai chegar para você e falar, cara, desmilitariza a polícia e está tudo resolvido, tem gente que fala isso, ou então, solta os bandidos que está tudo resolvido. Você consegue dimensionar onde está... qual é o maior desafio?

João Henrique Martins: Eu não tenho dúvida de onde é o maior desafio, é enfrentar o lobby no congresso de quem tem interesse econômico constituído para isso. Tudo isso que você falou faz sentido, está no tabuleiro, entre os atores, mas boa parte do que você descreveu é mais consequência do que causa, porque veja, o piso ideológico existe, ele é quase que o fermento ou o adubo que é jogado na terra, mas ele só prospera quando existe a semente econômica, ela está ali para... aí ela usa muito bem esse adubo. Então, por que que nós chegamos nesse ponto? O desafio para enfrentar o problema no Brasil hoje, primeiro, eu vou chegar no final, a gente precisa de uma reforma no sistema de justiça criminal, a reforma do sistema de justiça criminal para mim é a reforma mais importante do país, mais do que a política, mais do que a administrativa, mais do que a econômica, primeiro porque ela dá elementos para as outras funcionarem. Então, quando você faz uma reforma econômica e fala assim, lei de responsabilidade fiscal, o cara não pode fazer isso e aquilo no orçamento público, se fizer, ele perde o mandato, e se ele insistir é preso, opa, então você precisa de um sistema...

Luciano Pires: Capaz de cumprir.

João Henrique Martins: Meu amigo, se ele não faz, então, se não existe custo para a ação que pondere o benefício ilegal que ele quer, ele vai continuar fazendo, é exatamente o que a gente vive hoje, então a reforma econômica administrativa, ela tem mais visibilidade, mas todas elas... elas estão atrás da reforma do sistema de justiça criminal. A reforma teria três pilares, um pilar é a reforma do sistema policial brasileiro que é corrigir essas disfuncionalidades, aí é um debate que tem que chamar as policiais, todas elas têm que ficar confortáveis, acho que o caminho para essa reforma está dado pelas próprias polícias, você olha para a Polícia Militar, olha a para a Polícia Civil, eu não falei aqui da Polícia Federal e da Rodoviária Federal, porque elas também têm esses problemas, mas são bem menos, bem mais atenuantes do que das duas, mas a gente pode falar em um outro momento, talvez não hoje, e porque a única coisa que é realmente federativa no Brasil é segurança, então a gente tem mais ou menos segurança pelo desempenho dos estados, o que a Polícia Federal consegue fazer e a Polícia Rodoviária consegue fazer é muito importante e essencial para o país, só que ela entra dentro de uma estrutura complementar, então por exemplo assim, se as polícias falharem em conter o varejo da droga, a droga vai continuar sendo atraente, por mais que a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal atuem, explodam, o mercado é muito forte dada a falha interna dentro do estados, e é assim para qualquer outro tema. Então, a gente precisa... a correção precisa olhar para essas duas, porque elas são a coluna vertebral. A primeira é a correção do sistema policial, não digo a primeira, mas depois você tem a reforma... as outras duas estão conectadas, que é a reforma da legislação penal, em especial a lei de execução penal, e a reforma do sistema prisional no sentido de ampliar a profissionalização do que já existe, para todos eles basta olhar para o que funciona, que você já tem o caminho, qual é a direção, qual é o modelo, não precisa tirar inovação da cabeça, é olhar para o que já funciona e olhar para fora. Vamos voltar lá para o sistema policial, o que que funciona muito bem nas polícias judiciárias? As especializadas, que são aquelas que são policias judiciárias de verdade, que você não tem o balcão do Denarc para você apresentar uma ocorrência ou da delegacia antissequestro, e principalmente a delegacia antissequestro tem nível de eficiência absurdo assim, gigantesco, ela consegue reduzir a zero, que é uma típica polícia judiciária, então tem que levar esse modelo para todo lugar. DHPP que investiga homicídio, o nível de esclarecimento do DHPP é coisa de mais de 80% de esclarecimento, no geral ele pode ser pequeno, mas o DHPP, que é uma delegacia especializada, com o apoio de técnica da polícia tecno científica, que é o CSI, então é só olhar para ela, você fala, se é esse modelo, dá escala para esse e todos os outros que não funcionam, você elimina. Agora você não precisa eliminar da noite para o dia, você faz um processo de transição, pode até fazer uma estrutura... mas polícia judiciária é isso. A mesma coisa para a Polícia Militar, quando é que ela funciona? Quando ela funciona, quando ela tem uma equipe de inteligência, que faz uma coisa parecida com investigação, rapidamente descobre o cara que está roubando as casas, então reproduz isso, reorganiza, regulamenta essa ação, a mesma coisa com a polícia judiciária, põe todo mundo no seu lugar, faz um acordo entre eles. Mas para fazer isso precisa ter liderança política, precisa ter vontade, precisa querer enfrentar o problema, precisa trazer o problema para si, precisa correr o risco de dar errado, de chamar as duas que estão acomodadas. Mas vamos para o outro lado, esse sim é o principal, porque aqui nós estamos falando o seguinte, se você reorganiza, hoje, se você reorganiza a legislação penal, mesmo com o sistema policial disfuncional, a gente melhoraria muito, vamos dar uma lógica do que seria esse meu melhoraria. A gente tem uma taxa de homicídio hoje aí na casa dos 25, 26, eu acredito, o pior desempenho entre os países democráticos, ricos é os Estados Unidos, que tem uma taxa de homicídio em torno de 5 a 7. Então, se a gente consegue mudar a legislação, a gente sai de 28 para 14, está longe ainda dos 5 a 7, mas é muito. Pensa roubo, hoje a Califórnia, com toda aquela loucura que existe que estão fazendo hoje, ela tem 4 vezes menos roubo do que tem em São Paulo, 4 vezes menos, ela já chegou a ter 6 menos, agora ela tem 4. Se a gente consegue mudar a legislação com essa estruturação policial, ela cai para 2 vezes mais, ainda é muito. Então, é esse o nível de escala que a gente está falando. Então, você pode me perguntar, João, como é que muda, o que que muda essa legislação? Aí é o embate mais difícil, porque sistema policial, ele chegou nesse ponto por falta de liderança pública, falta de presidente, governador, que é chefe de polícia, que é o chefe das polícias, falta de deputado se senador com esclarecimento para não deixar os lobbies fazerem a loucura, porque aquela história, se você deixa um sindicato decidir a política, ele é igual...

Luciano Pires: É venha a nós.

João Henrique Martins: Exato, é uma bactéria que vai comendo tudo até todo mundo morrer, então você precisa, algum ator precisa falar, até aqui, tem vários exemplos disso que eu posso dar de como eles atuam na origem, são nossos parceiros, é legal, mas você tem que pôr o limite, se não o caldo vira. O lado da legislação é o lobby do modelo de advocacia criminalista que tem hoje no Brasil, isso nasceu já no final dos anos 70, que é o seguinte, quando você olha para a legislação americana, anglo-saxã de uma maneira geral, e aliás nem mais só elas, França, Espanha tem todo... tudo segue esse modelo, tudo segue a defesa de um criminoso, a defesa é feita na seguinte premissa, Luciano, você cometeu o crime, eu sou advogado, eu pergunto para você, você cometeu esse crime? Quer dizer, sou seu advogado, você tem que me dizer, que eu vou dizer o que que eu posso te defender, foi o roubo, foi o estupro, foi isso, foi isso, foi aquilo, ele vai dizer o seguinte, eu vou propor uma negociação até esse nível, está de acordo para você? Não tem como, você vai ser condenado, então vamos reduzir. Ou então, você pode não ser condenado, mas aí você tem que entregar isso, por exemplo, um processo de delação, é uma negociação onde o advogado que saber até onde ele pode ir. Acertou-se, definiu o preço, o cara... e é absolutamente legítimo, pode fazer isso para o mais vil criminoso, estuprador de criança, é a defesa, isso é o limite entre civilidade e barbárie, então a gente tem que garantir a defesa dele, ok, está no jogo. Como é feito no Brasil? Não importa qual crime você tenha feito, eu vou trabalhar não em... eu não vou estruturar a sua defesa em razão do que você fez, porque a base da negociação é dado, o que você fez, o que eu negocio, o que que vale mais para o estado, para a prestação de justiça, eu vou o tempo todo bater em questões formais, então não importa o que você tenha feito, você não fala mais nada, eu vou dizer que a polícia errou, torturou...

Luciano Pires: Cara, não precisa ir longe, não precisa ir longe, eu vou te descondenar por causa do CEP errado.

João Henrique Martins: Ponto, perfeito, isso é a prática formal. Qual que é a vantagem de fazer isso? Além de ser injusto, imoral, a questão é a seguinte, no mundo inteiro um advogado criminalista também olha para isso, é a primeira coisa que ele olha, teve erro da polícia, teve erro, teve abuso? Se não teve, então vamos para o pacote que nós decidimos aqui como cliente e profissional, vou te defender. Mas é óbvio que ele tem que avaliar se teve abuso e erro, mas isso é só uma fase, é a primeira, porque é mais essencial, depois vamos discutir o mérito, vamos discutir porque isso é prestação de justiça, inclusive, isso é quando o advogado criminalista atua a favor do cliente e da sociedade, eu não quero que um criminoso não cumpra pena, não receba a devida contra prestação do mal que ele causou, eu só vou defender para que ele faça isso no mínimo possível que vocês da sociedade decidirem, permitiram, legítimo, isso é democracia. O que a gente fez no Brasil, não importa o quão vil foi o crime que você fez, eu vou desconstruir ele no formal, qual que é a vantagem econômica desses dois? Porque quando eu trato com você na negociação, eu vendo uma vez, eu defino um preço, ainda que isso possa ter desdobramentos, mas é um pacote que não vai ser muito diferente, agora quando eu estou só buscando quisiras jurídicas, estou só buscando elementos para que você não responda pelo crime que você causou, além de não estar buscando justiça, porque o que eu estou buscando é a mais pura impunidade, eu estou te vendendo vários serviços ao mesmo tempo, o mesmo cliente compra vários serviços.

Luciano Pires: É uma indústria, cara, isso é uma indústria.

João Henrique Martins: Essa indústria se protege, como? Ela se protege como toda indústria faz, ela vai para o congresso e de forma legal e legítima, você pode dizer que isso é antiético, é imoral, mas é legítimo, porque ele não inventa a lei e sai cumprindo, ele vai lá, defende isso com os deputados, faz o seu lobby, pressiona, financia estudos que vão naquela direção, pega esses advogados que a hora dele custa 10 mil reais e põe o cara para fazer uma audiência de custódia, entendeu? Tem alguns organismos que têm uma atividade que chama-se, ai esqueci o nome agora, explicando o instituto é mais fácil, quando ele percebe que tem um juiz tomando medidas que vão contrárias ao que eles entendem que é a interpretação correta da lei, que é óbvia sempre no sentido de permitir que vá diminuir no controle do crime, eles começam a fazer uma série de ações, por exemplo, o cara está lá no interior do Amazonas, um juiz está dando decisões recorrentes no sentido contrário dessa percepção, eles dão o apoio jurídico, então vai um advogado de São Paulo, do Rio, de Brasília, assina junto, tudo pro bono, e aí isso para não permitir que uma jurisprudência nasça na primeira instância, porque vai afetar o desenho dele. Está errado, é ilegal? De forma alguma, o problema é que olha o nível de percepção de mercado, percepção de dano, quando você tem uma legislação... o supra sumo disso é você ouvir o grupo Prerrogativas falando sobre esse assunto da questão da liderança, o crime é um absurdo, tem uma defesa ideológica, mas é muito mais um instrumento, é muito mais fácil transformar isso em ferramenta instrumental, trabalhar isso dentro do congresso, você só observar as comissões, comissão de reforma do código penal, comissão de reforma da lei de execução penal, de cada dez membros, oito ou nove são advogados criminalistas desses grupos, aí sobra uma vaguinha ali para um juiz, um promotor, nunca você vai enxergar um representante de vítimas de crime, se você... uma discussão sobre essa na Europa, onde vigora o predomínio do direito das vítimas, você tem um documento que foi votado na ONU, no conselho socioeconômico, em 1984, mesmo um ano depois que a lei de execução penal foi feita no Brasil, que a nossa lei de execução penal ignora a vítima, porque ela diz, o criminoso é uma vítima que precisa ser ressocializada, ponto, ele ignora que ele cumpre pena como medida de justiça para as vítimas. Existe um documento chamado princípios e diretrizes dos direitos das vítimas, um crime que nunca foi positivado no direito brasileiro, lá ele descreve o que é vítima, que a vítima, além de quem sofreu o crime, os familiares, as pessoas que atuaram em socorro a ela, por exemplo, os policiais, ela recomenda e ela estabelece até como uma pré condição de um estado atender adequadamente as vítimas e a sociedade de constantemente rever a legislação para ver se não existe discriminação entre as vítimas, e para que o estado esteja fazendo tudo o que ele pode fazer, um postulado científico que trata o criminoso, ele obedece a lógica de custo benefício como qualquer um de nós.

Luciano Pires: É um empreendedor.

João Henrique Martins: Sim, indivíduos racionais enumeram suas preferências e estarão acima, aquelas que têm menos custo, e quem que impõe custo ao crime? É a produção legal de dissuasão e inabilitação, a lei tem que estar formada, você tem postulado teórico científico nesse natureza laureado com o Nobel ignorado, você tem de outro lado um postulado ligado à doutrina e a ética de direitos humanos, especialmente tratando a necessidade dos estados positivarem o direito das vítimas em dois sentidos, o direito à proteção, o direito de ser protegido, porque você tem vários dispositivos no tratado de São José da Costa Rica, que é a Declaração de Direitos Humanos das Américas, e definindo a necessidade, e que os estados são obrigados a proteger as pessoas, a família, você tem no sentido então de assegurar e positivar o direito das vítimas no sentido da proteção, ou seja, evitar que elas se tornem crime, e no sentido de prestar justiça, quando elas são efetivamente vítimas de um crime, bem, ao não fazer isso, você... crime é um jogo de soma a zero, ou você incentiva ou você desestimula a atividade criminal, a nossa legislação prevê o seguinte, um criminoso pode ser condenado a dez anos, mas ele só vai cumprir 20, 30% disso, por conta da progressão de pena, e mesmo durante o cumprimento ele tem os benefícios, então ele sai na saída temporária, tudo isso vai destruindo aquilo que na literatura científica chama-se se incapacitação, você tem duas formas de conter o crime, você dissuade, não faça o crime porque eu tenho polícia, tenho lei capaz para chegar até você, então a chance de você fazer isso e dar certo é muito ruim, e do outro é, uma vez que eu peguei, eu te incapacito, eu afasto você de todo ganho que você quis, a gente mantém, condenação é alta, mas prisão de fato, ela é ridícula, 20, 30%, durante esse período você tem uma série de benefícios, você não tem dispositivos legais que você consegue isolá-lo, tanto é, Luciano, que eu tenho uma dificuldade na hora que eu converso com colegas de fora do país de explicar dois institutos para ele, o primeiro é instituto do prisão em regime aberto, tenta traduzir isso para o inglês, eu desafio aos nossos ouvintes aqui, não faz o menor sentido, e aí eu conversando com um colega, ele falou, não, tem um erro na tradução. Eu não sou tão fluente em inglês, e aí sempre, não, é exatamente isso, eu já até... não estudei afinco para dizer isso, mas peço, às vezes, se tem um tradutor próximo, explica para ele. Cara, prisão em regime aberto é uma excrescência brasileira, não existe em nenhum lugar, que dizer, o indivíduo cumprindo, hoje nós temos em São Paulo 350 mil criminosos cumprindo pena nas ruas.

Luciano Pires: 350 mil?

João Henrique Martins: 350 mil, faz algum sentido isso? É maior do que a população... então, você tem esses absurdos recorrentes, porque você não consegue manter, então esse é um conceito desses absurdos que demonstra que a gente anulou o principal recurso de controle do crime em democracias, em regimes civilizados, que é a prisão. Então, pode tudo, mas não leve à prisão, porque a prisão é horrível, sim, a prisão, é ruim estar preso, ela não pode ser um calabouço, ela não pode ser um local onde se tortura o criminoso, mas é a justa prestação ao mal do crime, o mal da prisão...

Luciano Pires: Por definição ela tem que ser algo que minha quer, ela não pode ser uma colônia de...

João Henrique Martins: Aí o outro conceito do absurdo do regime... prisão em regime aberto, que é exatamente isso que qualquer policial ou juiz de fora do Brasil fala, poxa, desculpa, então não chama isso de prisão, chama de qualquer outra coisa. A outra é o chamado RDD, o que é o RDD? É o regime disciplinar diferenciado que ficou famoso em razão da prisão do Marcola, de líderes de facções, o RDD foi uma solução administrativa criada pela Polícia Penal, eu também não falei um pouco dela, que é o pessoal que cuida... são os profissionais que cuidam do sistema prisional, que estão lá gerindo, antigamente eram os agentes penitenciários, acho que dois anos se tornou Polícia Penal. Que é o seguinte, o criminoso, principalmente assim líder de crime organizado, para tentar controlar o indivíduo, você colocava ele, olha que absurdo isso, Luciano, você tirava ele do convívio dos presos, e colocava ele em uma cela, uma cela 3 por 4, 3 por 3, nesta cela ele tem chuveiro, ele tem cama, ele fica sozinho, ele pode ter acesso só a um ou outro livro, que seja monitorado, tem as suas três, quatro refeições por dia, tem direito a uma hora de sol por dia.

Luciano Pires: Uma visitinha íntima.

João Henrique Martins: Não, o RDD é uma cela 3 por 4, cama, banheiro, comida normal, tem uma hora de sol por dia e é isso. Isso é RDD. Aí na hora que eu explico que isso é aquilo que os criminosos mais temem quando estão presos, serem mandados para o RDD, que não é um tipo de regime de cumprimento de pena, é só uma medida administrativa para criminoso indisciplinado.

Luciano Pires: Isolar, você vai isolar.

João Henrique Martins: Você vai isolar, ele vai ficar um ano, hoje em dia acho que pode ficar até dois nessa condição, aí eu explico isso para os meus amigos de fora do país, e eles falam, mas qual que é a diferença disso para uma prisão normal? Eu falo, eu falo, não, isso é o RDD, a prisão normal não tem nada disso, ele fica em uma cela coletiva, que são raios, eles conversam o que eles querem, eles jogam bola, ele tem visita íntima, e aí o cara vai ficando... o olho vai crescendo, ele fala, puxa, mas isso não é prisão, prisão é esse primeiro que você contou, ele falou, qualquer um nos Estados Unidos, na Europa, Suíça, na Suécia, fica preso assim, em uma cela 3 por 4, tem o banheiro privativo, que é só dele, ou fica em um ou ficam dois, cara, isso é prisão, como que isso é o máximo da prisão no Brasil? Isso é o começo de qualquer prisão em qualquer lugar. Não, aqui a prisão, ele tem uma coletividade social, porque a lei manda que seja assim, então é óbvio que você não vai conseguir controlar as lideranças políticas, porque é óbvio que você não vai conseguir fazer aquilo que o Becker descreveu, que é a incapacitação, porque você mantém ele em conexão especialmente econômica, esses caras estão lá fazendo negócios, a diferença é que os negócios que eles fazem são dinheiro e o sangue da gente, mas tudo bem, porque...

Luciano Pires: E estão coordenados e estão planejando em rede, eles conseguem conectar...

João Henrique Martins: Então, o sistema prisional, ele só pode se formatar, quando eu falo formatar, é a arquitetura dele depende do que está na lei, então na hora que a gente mudar a lei e dizer o seguinte, acabou essa farra, a função da prisão é controlar o criminoso e prestar justiça às vítimas. A ressocialização, a própria literatura internacional diz o seguinte, é uma ação endógena, você pode oferecer ao indivíduo, você pode oferecer estudar, você pode oferecer trabalhar, pode oferecer assistência espiritual de diversos segmentos religiosos, se o indivíduo quiser acessar, acesse, se ele quiser se arrepender do que fez e se tornar uma pessoa melhor, que bom para ele, para nós sociedade, se ele foi condenado a 10 anos, é 10 anos fechado. E se ele sair e ficou revoltado porque ficou 10 anos fechado...

Luciano Pires: E cometer de novo.

João Henrique Martins: Aí vão ser 15, e aí a gente tem que estar aqui do lado de fora eficiente o suficiente para dar essa resposta rápida, então para dar essa resposta rápida e eficaz, eficiente, sem erro, eu preciso fazer a reforma do sistema policial, porque a polícia precisa melhorar ainda mais o seu desempenho. Então, eu preciso reformar a lei, porque reformando a lei, eu começo de verdade a proteger as pessoas e reformar a lei é principalmente alterar a lei de execução penal, para que ela pare de corroer a pena de prisão, hoje você nem precisaria alterar a quantidade de pena que é aplicada à maioria dos crimes, ela está muito parecida com o que ocorre na maioria dos países, o que a gente precisa fazer é que ela deixe de ser uma ficção, então se ele foi condenado a 15 anos, ele fique preso esse período. Ampliar mecanismos, por exemplo, de captura e sequestro de bens de criminosos, a gente viveu as semanas passadas um absurdo, o André do rap que é um traficante internacional recebeu um helicóptero de volta. Pelo amor de Deus, o cara não tem renda para comprovar a origem lícita da renda, como é que a justiça faz isso? Então, essas correções que estão muito mais ligadas ao formalismo, a você remover todo esse formalismo que desestruturou e corroeu o nosso direito penal, se você consegue remover isso em um debate nacional necessário, justo, eu até acho que isso tem que ir depois para a aprovação em termos de referendo, porque isso tem que ser um debate como é feito na Suíça, nos Estados Unidos, na França, a maioria... nesses países, a maior parte do debate e da alteração em legislação é por referendo, porque depois que você alterou não basta o lobby ir lá e convencer o deputado, o senador, o presidente da comissão, depois tem voto de liderança e essas coisas, quando você viu mudou a lei. Não, você é obrigado a levar a referendo, a você explica para a dona Maria, explica para o seu João que está acordando cedo, que tem roubo no ponto de ônibus, que você vai... condenado um criminoso a 10 anos, ele vai ficar só um ano e meio, porque ele precisa ser ressocializado, porque ele veio da periferia, tadinho, ele é pobre. Mas esse cara que está acordando 4 horas da manhã para pegar...

Luciano Pires: Que também é tadinho e também é pobre, e que em um determinado momento da vida, ele fez uma escolha, ele se afastou.

João Henrique Martins: Que é o começo da nossa conversa, exatamente isso, ele fez uma escolha dura, porque ele fez uma escolha pelo mais difícil, era muito mais fácil ter ido com o meu amigo lá, ter... não, eu demorei anos para conseguir comprar uma roupa da qual ele sugeriu para a gente usar ali, mas anos mesmo, acho que foram décadas. Então veja, esse debate, Luciano, eu quero usar um pouco o teu espaço aqui para tentar... esse é o caso da civilização brasileira, nós permitimos que nos últimos 40 anos destruíram o sistema de proteção civilizado da sociedade brasileira, destruíram, isso começa ainda nos militares, o pacote de abril de 77, se você pega a manifestação do ministro da justiça ao congresso, e o pacote de abril tratou da questão lá dos senadores, tinha um pedaço do senador biônico de eleição, de justiça eleitoral na época, que é por isso que ele ficou mais famoso. Só que o pacote de abril foi um mini reforma constitucional, e centro do pacote de abril, naquilo que tratava de segurança, ele diz expressamente, para lidar com a super população de presos, nós vamos diminuir os casos de prisão, então ao invés de você destinar recursos para ampliar o sistema prisional, reformá-lo, tirar ele da situação de barbárie, é muito mais fácil colocar o criminoso na rua e transfere a responsabilidade que era do ministro da justiça e dos presidentes da época para a dona Maria e para o seu João, se vira aí para lidar com esse criminoso às 4 horas da manhã, que vai tentar te roubar ou te matar no ponto de ônibus quando você sair para trabalhar. Então, olha o absurdo em termos de decisão, quer dizer, a gente tem ausência de liderança e eu estou falando, essa ausência de liderança começou com generais e com o ministro da justiça, em um governo em tese que não era de esquerda. Eu estou ressaltando esse ponto porque isso só piora a partir daí, a lei de execução penal é de 83, a ação do lobby, o mecanismo é o mesmo, foi a ação do lobby dos advogados criminalistas que a partir de um argumento que faz sentido, sensato, que é a situação ilegal de muitos presídios, que você submete lá o condenado lá à uma situação sub humana, tortura contínua, isso obviamente não é aceitável, mas igualmente inaceitável é colocar um criminoso na rua sem cumprir a sua pena, e principalmente colocar sob risco as pessoas honestas que estão lá. Os militares aceitaram isso lá em 77. Por que que aceitaram? Porque é cômodo, quando você tem um lobby forte que faz barulho, que faz pressão, e do outro lado você não tem nada, não tem nada, então é muito mais fácil, você atendeu, todo mundo bate palma, estamos... e na própria manifestação do ministro, nós temos que modernizar o nosso sistema, comparar a outros países, isso continua, o pacote de abril de 77, em 83 você tem a lei de execução penal que segue a mesma lógica, foi construída por esse lobby. E aí sim, quando entra a redemocratização, assumem os partidos de esquerda, eles seguem com a mesma lógica, o ECA de 90 considera qualquer criminoso de 17 anos um anjo, que ele destrói uma vida, ele não pode nem ser dito isso, que ele destrói essa vida, porque é crime.

Luciano Pires: Você limpa o passado dele completamente.

João Henrique Martins: Exatamente, e ele não é processado por homicídio, é crime análogo a homicídio, esses caras absurdos, eles só ampliaram, aí vem, ECA, aí vem mais recentemente audiência de custódia que só avalia a ação do policial e assim por diante. Você tem uma curva contínua de medidas que vão desestruturando o efeito incapacitador da prisão, da pena, vão ampliando o processo de baixo custo do crime, porque o baixo custo do crime é impunidade, que é quando você identifica o criminoso, mas não pune, ou não pude proporcionalmente, desculpa, é impunidade e a não punição, ou a punição desproporcional, você... é ao contrário, a impunidade é você não encontrou o criminoso, aquilo ficou impune, você encontrou, foi processá-lo, só que você dá uma medida punitiva completamente desproporcional ao dano que ele causou.

Luciano Pires: Quando você não o tira da cadeia depois de um período, ele fica ali só... quando você não impede os caras de fazer uma operação dentro de uma favela, quando você fala para o cara, se você tirar a arma daí, se você der um tiro, você vai ter que explicar. Cara, eu estou embaixo de um tiroteio, como assim eu não posso? É uma atrás da outra.

João Henrique Martins: É exatamente isso que na literatura chama de baixo custo do crime, quer dizer, não existe uma percepção, não há nenhuma razão para quem se destina ao crime não o fazer, entendeu? Se você é uma pessoa boa, é uma pessoa do bem, é uma pessoa que fez uma escolha ética e moral nesse sentido, ponto. Agora você não vai cometer o crime mesmo que a lei te determine a fazê-lo. Agora, se você está do lado que não está nem aí, o mal, a dor e o sofrimento, você quer atingir o objetivo não importa a dor e sofrimento que você causa para o seu igual, essa condição, você está plenamente incentivado a fazer, que é essa grande mudança na percepção sobre como lidar com crime que mudou dos anos 50, 60 para essa do Becker que eu estou descrevendo. Até você pensava, o crime... por que que o indivíduo se torna criminoso, é uma questão endógena, não é questões sociais, psicológicas, qual que é o consenso da ciência, não tem muita explicação para o que os indivíduos optam, você tem irmãos que foram criados nas mesmas condições, seja com privação, seja com excesso, famílias ricas, e um se torna um filantropo e o outro se torna um criminoso vil, quer dizer, o que que explica isso? É um processo endógeno, ele recebe informações, recebe, a relação dele com o mundo, acontece algo lá dentro que ele produz isso. Hoje em dia nem psicopatologias são aceitáveis como razão para inclinação para o crime, isso é a área da formação do criminoso. O que é ad consenso, independentemente de qual a razão porque ele decidiu ser criminoso, ele só irá cometer o crime e, portanto, vitimizar alguém quando o custo for baixo. Então, não importa porque um pedófilo se tornou pedófilo, importa que ele só vai atacar uma criança quando ele perceber que o custo é baixo para ele, os pais não estão vigiando.

Luciano Pires: Quando a relação custo benefício for positiva.

João Henrique Martins: Por isso que os pedófilos saem dos Estados Unidos e vão para alguns países do sudeste asiático, a África, o Brasil, porque sabe que a pena é muito mais branda do que nesses lugares. Lá ele pode ir... dependendo do estado, ele pode ir para a cadeira elétrica, em outros ele vai ter prisão perpétua, e mesmo nos lugares onde não conseguem comprovar, só o fato dele ter sido processado por um crime sexual, ele entra na lista negra...

Luciano Pires: E ele vai parar em um site na internet onde os vizinhos podem ver onde ele mora.

João Henrique Martins: Exatamente, ele é obrigado a relatar, ele chegou em um município, ele tem que ir até o xerife e dizer, eu respondi por um processo por isso aqui, estou morando nesta casa, está aqui. Então é isso, o custo é alto, então essa é uma decisão que sociedade toma. Ah, mas isso é agressivo, é abusivo, e se a investigação foi malconduzida? Ok, tudo isso é verdade, é um risco, só que do outro lado você tem um risco de as crianças virarem vítimas em série de criminosos como esse. A sociedade olha para esses dois riscos e fala, qual é o risco mais possível de ser mensurado e qual o risco inaceitável? É claro, qualquer um de nós pode ser acusado por um crime desse e ter esse tipo de constrangimento na lista ou até ser processado, agora eu prefiro submeter a esse risco, do que ter o risco do meu filho ser capturado por um maníaco. Essa decisão é da sociedade, por isso a maioria desses países decidem a estrutura penal, que é os artigos do contrato social que mais importância tem, porque todos os restantes são ações positivas, ações de melhoria da vida, aonde nós queremos chegar, quase que princípios, esses artigos que tratam da proteção da vida do direito penal, vamos dizer assim, eles tratam da garantia da existência, sem isso não há vida. Então, é a defesa, se não tiver defesa não tem como avançar. Então, é muito claro para eles e é inegociável, por isso a maioria das mudanças em muitos desses países, elas são submetidas ao escrutínio público, você vai lá para o plebiscito na eleição municipal, estadual, municipal e nacional nos Estados Unidos, na Europa quando você não tem, como a Suíça e a França, que tem o hábito contínuo de fazer plebiscito, você tem mecanismos que são como se fossem audiências públicas obrigatórias, é necessário aqueles projetos transitarem, tem impacto grande. Tudo isso na minha visão é o principal problema do Brasil, a estrutura regulatória em dizer o que é permitido no jogo dentro da sociedade brasileira, a gente aceitou ao longo do tempo, nós aceitamos as regras e aceitamos o modo de definição dessas regras, que é o mais crônico. Então, por isso a necessidade de uma reforma, a reforma precisa começar, mudar a lei, submeter qualquer alteração futura à mecanismos de escrutínio público, de avaliação pública, que se não for plebiscito e referendo, audiências públicas condicionadas, tem uma série de coisas que a gente pode pensar e desenhar, isso tem que alterar a modelagem do sistema prisional hoje, porque hoje, por exemplo, o sistema prisional em alguns estados e proibido você construir aquela barreira, porque existe lá um parecer de que isso oprime o preso, então você tem que colocar gradil do lado de fora, olha isso. Então, o sistema prisional é dinheiro nosso, além da nossa segurança, essas decisões estão sendo tomadas em nosso nome, então você muda a lei, da lei você muda o sistema prisional, e o sistema policial é o que está correndo ao lado, eu acho que ele é o que depende menos de fatores externos, porque depende só de liderança, nós estamos falando com gente boa, que são os policiais, você traz esse pessoal na mesa, se as lideranças políticas transferem confiança, é possível, não é fácil e rápido, mas é possível. A legislação penal é muito mais difícil, porque hoje a gente não tem um mercado, não tem um mercado que atende as vítimas, mas tem um mercado que atende a todo criminoso, corrupto...

Luciano Pires: Eu peguei o livro do Mota e quando eu fiz o post falando o livro, eu falei, cara, leia o livro do Mota aqui, o problema está desenhado, está diagnosticado, tem soluções apontadas, está tudo pronto, cara, a gente só não consegue fazer, a gente só não consegue implementar. Quem quiser... cara, eu falei pouco, porque eu tenho um monte de perguntas, mas se eu for deixar a gente vai aqui até, já estourou aqui bastante, mas vale a pena, esse assunto é fundamental, vou querer trazer você de novo aqui, se você topar.

João Henrique Martins: Com certeza.

Luciano Pires: Primeira recomendação, assista Entre Lobos, recomendação número 1, segunda recomendação, quem quiser conhecer um pouco mais, chegar em você, comprar teu livro, assistir teu filme, visitar tuas redes sociais, fazer o curso, como é que faz? Fala para mim.

João Henrique Martins: Vamos lá, eu tenho um curso que está... a principal plataforma que eu tenho hoje, deixa eu só abrir ela aqui, porque você vê o meu nível de destreza com ela, eu preciso olhar para lembrar. Eu estou no Instagram, jhenriquemartins.oficial, jhenriquemartins.oficial, então esse o meu canal lá no Instagram, é por onde me comunico e faço essa intervenção pública, principalmente, lá você vai encontrar alguns conteúdos, ultimamente, desde que eu assumi o cargo, uma pessoa pública, a gente tem dificuldade de arrumar tempo para produzir algo, mas eu fiz, inclusive, a pedido, um curso, chama-se curso Arena de Segurança Pública, está lá no meu Instagram, você vai encontrar, onde eu explico um pouco essa Arena de Segurança Pública e explicar porque chegamos a esse ponto, e qual é o desenho para ser feito, quais são as forças políticas possíveis, as forças econômicas que pressionam, quais são os caminhos, essa ideia de fazer o trabalho de relações... de comparação internacional eu explico um pouco no curso, é o meu principal material de divulgação e interconexão hoje aqui, eu tenho algumas obras técnicas que eu fiz, tanto como artigos, como os anuários, as pesquisas que eu já fiz, eu estou preparando dois livros aqui para sair, na verdade são três, para falar desses três pedaços, o que seriam os três, tecnicamente dos três pilares da reforma, que é a reforma do sistema policial, reforma do sistema prisional e reforma do sistema da legislação, que são projetos que foram momentaneamente interrompidos não, mas pausados em razão do convite do secretário de segurança, que me chamou para o front de novo.

Luciano Pires: Você está em um lugar que uma medida sua seja adotada lá, afeta a sociedade inteirinha, cara.

João Henrique Martins: Exatamente, e você vê, a primeira vez desde a redemocratização que teve uma transição de governo de fato, porque sempre era o mesmo grupo político, então a gente teve um trabalho tanto de análise, quanto agora de reprodução...

Luciano Pires: E você está com um governador aí que é focado em resultado, cara.

João Henrique Martins: Fantástico, é muito... ao mesmo tempo é muito difícil e muito fácil trabalhar com o governador Tarcísio, porque ele tem foco, pragmatismo, objetividade, essa é a parte fácil, e a parte difícil, para você ter uma ideia, hoje está sendo construído no âmbito do governo, ele já tinha um programa de metas, tem o programa de metas, tem o PPA, para quem não está muito acostumado com essa linguagem, que é o ano plano pluri anual, e tem a definição de recursos, hoje você não gasta... não compra um alfinete se ele não estiver conectado com o PPA e com o seu plano de metas, que por uma vez foi aprovado pelo titular da pasta, que por sua vez tem que ter acordado com o governador, é o controle de gestão, é o controle de administração focado nos resultados.

Luciano Pires: Você vai voltar aqui?

João Henrique Martins: Com certeza.

Luciano Pires: Cara, muito obrigado pela conversa, esse assunto aí é importantíssimo, ele é fundamental e muita gente está levando isso aí na base... não reparou, muita gente não reparou que de um tempo para cá, a gente inclusive baixou de 65 mil assassinatos ano para 40 e pouco, o que significa isso? O significado de uma... continua absurdo, mas tem um caminho para...

João Henrique Martins: A questão é exatamente essa, primeiro, reduziu, a gente precisa explicar, precisa entender o que aconteceu, segundo, mesmo tendo... que com certeza é modernamente a maior redução em números absolutos na história acho que dos últimos 50 anos, nenhum país conseguiu fazer isso, por outro lado continua gigantesco, então olha o também do desafio que a gente precisa enfrentar, e ele fica só como um assunto periférico, ele nunca entra no centro do debate. É isso.

Luciano Pires: Tamo junto.

João Henrique Martins: Abraço.

Luciano Pires: Muito bem, termina aqui mais um LíderCast, a transcrição deste programa você encontra no LíderCast.com.br.

Voz masculina: Você ouviu LíderCast com Luciano Pires, mais uma isca intelectual do Café Brasil, acompanhe os programas pelo portalcafebrasil.com.br.

 

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