Café Brasil Premium 844 - Narrativas moldam o mundo

Data de publicação: 17/10/2022, 11:04

https://www.youtube.com/watch?v=q2KITcdX6Es

Existe um estudo neurológico chamado “teoria do pensamento narrativo”, que mostra que para que nossas experiências conscientes façam sentido, nosso cérebro atribui a elas uma estrutura semelhante a uma história. Constrói uma narrativa com uma sequência de fatos e algum tipo de correlação entre eles. E são essas narrativas que dão forma ao nosso mundo.

https://thedecisionlab.com/insights/business/the-power-of-narratives-in-decision-making

 

Bom dia, boa tarde, boa noite. Você está no Café Brasil e eu sou o Luciano Pires.

Posso entrar?

[tec] COMENTÁRIO DO OUVINTE [/tec]

Edlene!!!! Você quer matar a gente do coração, é? Todo mundo aqui chorou junto com você. Eu acho que estamos todos muito sensíveis com essas questões da pátria, não é? Ao menos aqueles de nós que ainda têm coração, que defendem valores fundamentais que nos ajudam a conviver em harmonia, a amar a pátria. Tá tudo misturado, manipulado, usado por gente que quer obter vantagens. E no meio dessa loucura, se perdem os brasileiros que querem realmente contribuir para um futuro melhor de nossas crianças. Bem, essa tem sido a nossa missão nos podcasts, e o Café Com Leite é nosso projeto predileto. Porque ele cuida do futuro. Muito obrigado por sua generosidade em compartilhar conosco sua emoção, viu?  Grande beijo em nome de toda nossa equipe.

 

https://www.youtube.com/watch?v=ipftgOPG7Ps

O escritor Ruy Castro, escreveu em sua coluna na Folha de São Paulo em 2009, um pequeno artigo chamado “Publique-se a lenda”. Aqui vai uma adaptação dele para este episódio:

Se você assistiu ao filme de 1961 "O Homem Que Matou o Facínora", de John Ford, recorda-se de como o senador Ransom Stoddard, interpretado por James Stewart, narra para o editor do "Shinbone Star" como fez toda a sua carreira política em cima de uma fraude. Contrariando a lenda, não fora ele que matara o facínora e, com isso, trouxera a lei para aquela região do Oeste, mas o ex-pistoleiro Tom Doniphon, interpretado por John Wayne, que era tão frio quanto o bandido.

O jornalista sorri, rasga as anotações e diz a frase que ficaria célebre: "Quando a lenda se torna realidade, publica-se a lenda".

Há tempos, uma amiga me perguntou de quem era a frase. Respondi que, pelo visto, era do escritor James Warner Bellah, autor do roteiro. E só há pouco me dei conta de que o conceito já existia e pode ter sido criado aqui mesmo, no nosso quintal.

"O importante não é o fato, mas a versão" -lembra-se? É a mesma coisa. A frase, dos anos 40 ou 50, era atribuída ao esperto político mineiro Benedito Valadares. Mas outro político, também mineiro e também esperto, José Maria Alkmin, estrilou: "Poxa, Benedito, eu inventei a história de que o importante não era o fato, mas a versão. Você se apropriou dela e agora todos acham que é sua". Ao que Benedito, ainda mais esperto, retrucou: "O que prova que ela está certa, meu filho".

Mas, e se a frase tiver vindo de ainda mais longe no passado e não for de nenhum dos dois? No começo do século, o romancista francês Georges Duhamel escreveu: "Como toda pessoa séria, não acredito na verdade histórica, mas na verdade da lenda".

Vale o escrito. Do presidente  ao mais nulo vereador de aldeia, noventa por cento dos políticos brasileiros na ativa construíram suas carreiras em cima da lenda, não da realidade.

Os restantes dez por cento ainda não se deixaram flagrar.

 

Pois é... mas o político Jarbas Passarinho, também escreveu na mesma Folha, em 2002, que Gustavo Capanema, então ministro de Getúlio Vargas, havia se queixado de que o José Maria Alkmin é que havia se apropriado de uma frase dele: “Em política o que vale é a versão, não o fato...”.

E Passarinho continua...

Frequentemente, leio, como uma crítica ao nepotismo, que Pero Vaz de Caminha teria inaugurado na cultura brasileira o favorecimento dos parentes. Pretende-se que na carta que escreveu ao rei D. Manuel, sobre "o achamento da Terra de Vera Cruz" o cronista conclua pedindo um emprego a um sobrinho. Ora, o que se contém na carta é que, julgando-se merecedor por haver bem servido ao rei, terminou Pero Vaz com estas palavras:

"Peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro, o que receberei em muita mercê".

Os engraçadinhos que deturpam a frase desconhecem que a ilha, no litoral da África ocidental, era uma prisão de criminosos portugueses desterrados. Um deles era Jorge de Osório, genro de Pero Vaz Caminha. Caminha não estava pedindo um emprego para o genro. Por amor à filha, pediu ao rei que o transferisse para Lisboa...

A ignorância histórica repete-se ao se atribuir ao presidente francês Charles De Gaulle ter dito que o Brasil não é um país sério.

Devido a discordância com a França, cujos pesqueiros capturavam lagosta na plataforma continental brasileira, o Itamaraty teve delicada missão junto ao Ministério das Relações Exteriores Francês no começo dos anos sessenta. Chegou-se a prenunciar a vinda de um cruzador francês para impor o suposto direito dos pesqueiros. Nosso embaixador Alves de Souza teve dificuldades de defender-nos por conta das constantes mudanças de orientação que recebia. Desapontado, disse ao secretário que o acompanhava: "Decididamente o Brasil não é um país sério". Ele revela isso nas suas memórias. Mas nós, com certa vocação masoquista, preferimos emprestar a frase ao presidente De Gaulle.

É melhor ser insultado por um estrangeiro...

 

E Jarbas Passarinho conclui o artigo contando que por volta de 1950, o então deputado Tenório Cavalcanti, no plenário da Câmara, fez uma citação de uma frase atribuída a Rui Barbosa. Foi contestado por um colega, que disse que Rui nunca havia dito aquilo. Tenório respondeu: “Se não disse, pensou dizer...” e continuou sua fala.

 

Tá vendo? Ao longo da história da humanidade, as histórias sempre moldaram nossas tradições, definiram nossas crenças religiosas, deram origem à nossa sabedoria comum e valores mais profundos. Talvez o mais importante, contar histórias permitiu que a herança cultural fosse transmitida através de gerações por meio de uma série de alterações ou exageros. Sim, exageros.

Nosso dia-a-dia é repleto de histórias: ouvimos nos noticiários, na TV, nas conversas, por meio de textos, nas redes sociais, em podcasts e durante algumas leituras na hora de dormir. A maneira como as histórias se desenrolam é chamada de narrativa: uma sequência de eventos ordenados no tempo, um fluxo no qual os eventos anteriores moldam ou causam os seguintes.

Na prática, processamos fatos e emoções “empacotando-os” em sequências de eventos. Essas histórias fornecem a base para compreender novas experiências, fazer julgamentos e tomar decisões sobre os objetos aos quais a história se refere e desenvolver atitudes e crenças gerais.

Histórias são fundamentais para que compreendamos a realidade. Ou a moldemos da forma como nós – ou alguém – quer.

Além disso, esse mecanismo peculiar do nosso cérebro expressa a necessidade da mente humana dar sentido às coisas. Ver os eventos como ligados uns aos outros em vez de serem apenas ocorrências acidentais e evitar uma sensação de desordem ao perceber a realidade circundante.

Temos uma concepção linear do tempo, usamos eventos passados, nossas memórias, para explicar o presente, nossas percepções. E usamos os eventos presentes para prever o futuro, nossas expectativas. Esse raciocínio baseado no tempo também tem um traço evolutivo: é um mecanismo de sobrevivência.

Por exemplo, quando você estabelece uma relação de causa e consequência entre bater o dedo do pé e sentir uma dor insuportável, ajuda a reconhecer o mesmo perigo no futuro. E possivelmente, a evitar que um acidente semelhante ocorra.

 

Várias teorias afirmam que pessoas racionais formulam seu julgamento sobre um produto, avaliando separadamente as implicações de cada informação que recebem. Em seguida, somam ou fazem uma média dessas implicações para desenvolver uma opinião geral.

No entanto, foi demonstrado que o que realmente se passa na mente de muitos potenciais compradores é uma sequência de eventos. Uma história é muito mais atraente do que informações isoladas porque estimula nosso cérebro de uma maneira que espelha a experiência de uma situação real.

Em outras palavras, processamos histórias quase da mesma maneira que processamos experiências reais que vivemos no dia a dia.

Um experimento, no qual os participantes foram convidados a ler folhetos de viagem de férias, é marcante. Em uma brochura, os locais a serem visitados foram descritos na forma de uma narrativa que transmitia a sequência de experiências que os veranistas provavelmente teriam em cada dia da viagem. Na outra brochura, apenas características dos locais a serem visitados.

É claro que o folheto com forma narrativa foi muito mais popular.

Nós amamos, precisamos, vivemos de narrativas.

A decisão final de comprar um item, muitas vezes está baseada mais na emoção causada pela sequência de eventos do que pelas características individuais do produto. Basta assistir a alguns comerciais de produtos, e você verá lá a contação de histórias. Inclusive passando das medidas, pois hoje em dia, a empresa que fabrica perfume está querendo dizer como é que eu devo viver minha vida... São as narrativas a serviço de visões ideológicas do mundo. E da engenharia social.

 

Mas será mesmo que a comunicação baseada nas narrativas pode levar a uma mudança real no comportamento das pessoas?

Se você tem dúvidas, pensa na Ilíada, o poema épico de Homero que conta a epopeia do herói Ulisses. A história se passa na região da Grécia antiga, e teve repercussões muito além daquela região e daquele tempo. A Ilíada ajudou a moldar toda uma sociedade e sua ética. Homero descreveu formas de pensamento, descreveu como a comunidade deveria encarnar seus valores e viver sua vida. Mostrou a consequência de escolhas morais. E definiu a jornada do herói, que é usada até hoje em todas as narrativas que encaramos, dos Vingadores a Luciano Pires falando do seu Everest...

A literatura chinesa é baseada no Livro dos Cânticos, uma coleção de poemas que parecem simples e que, por milênios, acumularam um imenso repertório de interpretações e comentários. A poesia não era apenas coisa de poetas profissionais. Um aspirante a burocrata governamental na China, por exemplo, tinha que passar pelo rigoroso sistema de exame imperial, que exigia um conhecimento detalhado de poesia. Esperava-se que altos funcionários do governo fossem capazes de escrever poemas casuais por capricho. Eram as narrativas moldando seus mundos.

E como não falar das Mil e Uma Noites? Aquelas histórias proporcionaram entretenimento e educação em igual medida. Emolduradas pela inesquecível história de Scherezade e do rei que jurara matar qualquer mulher depois de passar apenas uma noite com ela. Diante da perspectiva da morte certa, Scherezade começou a contar história após história até que o rei se viu curado de seu juramento assassino – tornando Scherezade não apenas sua rainha, mas também a heroína da narrativa.

Como não lembrar de Monteiro Lobato? George Orwell? Mary Shelley com seu Frankenstein? Hector Babenco com Pixote ou Chico Buarque com Geni e o Zepellin?

Histórias têm um impacto real na maneira como pensamos e fazemos nossas escolhas, portanto, podem sim ser ferramentas úteis para cientistas comportamentais moldarem as decisões de cidadãos e consumidores.

As narrativas enquadram a história e, se você controla o significado da história, controla as pessoas. E narrativas são importantes porque não temos tempo ou dedicação para estudar todos os assuntos importantes que surgem. Por isso pegamos atalhos, que conduzem nossas decisões.

Narrativas são tão convincentes que devemos ter cuidado com o tipo de mensagem que elas enviam e as repercussões que terão nos destinatários. Por esse motivo, ao promover uma narrativa, seja um vendedor, um formulador de políticas ou um cientista comportamental, deveriam pensar antecipadamente na direção que querem seguir e no tipo de mudança que querem trazer para a sociedade. Bem, eles estão fazendo isso.

https://www.youtube.com/watch?v=UZbYmCcmdxY

É assim, ao som de Where is the love, com o The Black Eyed Peas, que vamos saindo... pensativos. Procure a letra dessa canção, vale dar uma olhada.

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Entendeu então a força das narrativas? Por isso é fundamental saber como elas são contadas e o que podemos fazer para tomar cuidado com quem faz a nossa cabeça.

Foi isso que eu tentei fazer meu novo livro Merdades e Ventiras – Como se proteger da mídia que quer fazer a sua cabeça. Como disse meu amigo Helder Peixoto: “Cara...seu livro não é de cabeceira é de mochila. Virou um manual que levo em todos lugares para não perder a didática na hora de explicar para alguns imbecis como eles viraram imbecis.”

http://Merdadesventiras.com.br

O Café Brasil é produzido por quatro pessoas. Eu, Luciano Pires, na direção e apresentação, Lalá Moreira na técnica, Ciça Camargo na produção e, é claro, você aí ó, completando o ciclo.

O conteúdo do Café Brasil pode chegar ao vivo em sua empresa através de minhas palestras. Acesse lucianopires.com.br e vamos com um cafezinho ao vivo.

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Para terminar, um pedaço da letra de Where is the love, do The Black Eyed Peas:

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